Os dias seguintes também não lhe trouxeram descanso. Ela lutou o máximo que pôde, rezou, treinou, estudou, implorou a Deus por ajuda, tomou banhos gelados esperando que a dor em sua pele avermelhada ajudasse a desinfetá-la do pecado, dormiu apenas algumas horas e acordava aterrorizada todas as vezes, com o corpo tremendo após as inúmeras imagens que antes ela nunca ousaria pensar, sentindo-se um passo mais perto da danação.
Ela se sentia delirante. A tortura que seu próprio corpo estava a fazendo passar estava a levando ao seu limite, ao extremo de suas capacidades. Não importava o quanto ela fosse melhor em tudo, ela não tinha a menor ideia do que fazer com a faísca interminável que continuava se espalhando e a consumindo.
Como último recurso, ela entrou no escritório da Madre Superiora e pediu para conversarem a sós.
A Madre Superiora tinha grandes expectativas em relação a Beatrice, e ela sabia disso. Ainda se lembrava da honestidade em sua voz tranquila quando ela admitiu que a via assumindo seu papel no futuro, que ela era brilhante, forte e destinada aos cargos mais altos. Beatrice estava apavorada em decepcioná-la, mas esse era seu último recurso. Ela tinha o sentimento de que ela a ajudaria a resistir à tentação e se manter firme, e que lhe mostraria o verdadeiro caminho a seguir.
Madre olhou para ela com uma pequena centelha de preocupação nos olhos, em silêncio, esperando que Beatrice se sentisse confortável e segura o suficiente para falar quando estivesse pronta. Beatrice manteve as mãos fechadas sobre os joelhos, em sua impecável posição sentada à sua frente. Ela sentiu a pulsação e a pressão impossível de ignorar crescendo em seu sangue e fechou os olhos, suspirando. Estava exausta e não tinha ideia do que mais poderia fazer.
"Madre, acho que tem um demônio dentro de mim. Acho que fui possuído pelo mal."
Madre franziu a testa. Aquilo era pior do que qualquer coisa que ela poderia esperar. Correu imediatamente para o armário esquerdo de sua mesa. A expressão de dor no rosto de Beatrice, o jeito como ela tremia com esforço contido... ela tinha que ajudá-la imediatamente.
Ela agarrou o cabo de uma faca, e Beatrice viu a lâmina azul fria característica. Era divinium, mas não havia nenhum brilho nela.
Madre também notou isso e caminhou rapidamente até onde Beatrice permanecia sentada, segurando a faca em frente ao seu rosto, esperando que ela reagisse.
Nada.
Beatrice fechou os olhos com força. Não podia acreditar.
Ela tinha certeza absoluta de que aqueles sentimentos eram estranhos, que pertenciam a outra coisa, algo que encontrara sua fraqueza e estava explorando contra ela.
"Sinto muito, Irmã Beatrice, eu não acho que..."
"Madre, por favor, vamos chamar a irmã Shannon. Tenho certeza de que há um demônio aqui, provavelmente algum que não registramos antes. Ele está... Ele está me deixando louca. Eu sei que ele está aqui."
A voz de Beatrice falhou um pouco no final, e ela fechou a boca, envergonhada por deixar suas emoções se exaltarem tanto. Ela tentou se recompor, enquanto a Madre Superiora olhava para ela com a mesma preocupação de antes. Beatrice a viu olhando ao redor, como se tentasse ao máximo encontrar as palavras certas para se comunicar com ela.
"Este demônio... quer que você faça alguma coisa?" - ela perguntou com cuidado. Beatrice levantou os olhos e sentiu-se um pouco aliviada; não havia zombaria ou ceticismo em sua voz, apenas preocupação genuína. Ela assentiu.
"Ele quer que você se machuque a si mesma ou aos outros?"
Beatrice balançou a cabeça lentamente, negando, e baixou os olhos ao perceber que a mulher à sua frente provavelmente descobriria exatamente o que esse demônio estava a induzindo se continuasse perguntando. Ela não suportava essa ideia. Em sua cabeça, isso era ainda pior do que qualquer outro resultado possível.
"Ele quer que você faça coisas que vão contra Deus?"
Beatrice balançou a cabeça novamente. Madre franziu ainda mais as sobrancelhas, a cicatriz na pálpebra e na bochecha dobrando-se sobre si mesma como uma ruga.
"Coisas que vão contra seus votos?"
Beatrice olhou para ela, olhos grandes e vulneráveis, com o tímido vestígio de lágrimas nos cantos. Ela murmurou um suave "sim", e isso foi tudo que a Madre Superiora precisava para saber exatamente o que estava atormentando Beatrice.
Ela deixou a faca apoiada na mesa e se aproximou de Beatrice novamente. O silêncio fez com que ela soubesse que estava ciente do que estava acontecendo, e a vergonha que a impregnava era impossível de se livrar. A consumia. Ela queria pular daquela janela e acabar com tudo.
Madre sentou-se ao lado dela e lançou-lhe um olhar compreensivo.
"Beatrice, a natureza humana contém em si a capacidade de realizar atos que são expressões de Deus... ou do diabo. Somos todos iguais em nossas decisões, mas isso não significa que tudo o que fazemos seja definido por um ou outro." Beatrice se mexeu desconfortavelmente em seu assento, sem entender muito bem aonde aquilo ia dar.
"Ser um ser humano feito de carne e ossos significa que alguns atos, pensamentos e desejos vêm da sua condição humana, e não necessariamente vêm de fontes boas ou más. Eles simplesmente vêm de você e de quem você é. Não importa o quão perto da sua fé em Deus você viva, você ainda é humana, Beatrice, e deve enfrentar isso pelo resto da sua vida. O que eu te aconselho a fazer é fazer as pazes com isso, ter autocompaixão, amar a si mesma e ser você mesma não vai contra os seus votos."
Beatrice saiu do escritório da Madre Superiora se sentindo ainda pior. Não conseguia entender nada do que havia dito. Não fazia ideia do que queria dizer com "amar a si mesma". Isso não era orgulho? Isso não era ceder à luxúria? Dois pecados capitais. Ela não poderia estar certa. Provavelmente apenas teve pena dela e tentou ser suave em sua maneira de dizer que ela era indigna e esses impulsos malignos vieram de si mesma, porque refletiam em quem ela é.
Ela estava confusa e magoada, desejando ser repreendida e censurada. Que lhe dissessem que ela deveria conter esses desejos e não ser fraca diante das tentações, que deveria trabalhar mais e se sacrificar ainda mais para se livrar delas, que havia uma solução, uma saída, que ela poderia acabar completamente com sua existência como ser sexual e passar o resto de sua vida em fria castidade, e que esse era o único caminho para Deus.
Ela queria ouvir todas essas coisas para que aquelas mesmas que já ressoavam em sua mente soassem mais verdadeiras, pois lhe faltava força para sustentá-las, repeti-las e acreditar nelas.
Beatrice foi para a cama logo após o pôr do sol, pulando o jantar, a sessão de oração e até a noite de cinema. Ela se sentia exausta e deitou-se mesmo desperta, mexendo-se inquieta e repetidamente, tão cansada, mas transbordando de energia pecaminosa que não podia ser exorcizada de seu sistema. As palavras da Madre ainda ecoavam em seus ouvidos, enviando-lhe uma mensagem muito confusa, mas ela estava cansada demais para se sentir envergonhada por qualquer coisa. Fechou os olhos e adormeceu ainda pensando nisso.
• Todos os direitos reservados a @/Double_Dublin autor(a) do título de 'The Cure For Deviation' publicado originalmente em inglês no AO3 •
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A cura para o desvio
Hayran KurguIrmã Beatrice vive sua vida em tormento e vergonha sobre quem ela realmente é, embora geralmente consiga esconder isso com suas habilidades e excelência. Mas torna-se difícil esconder-se ao lado de Ava, que aproveitará a chance para ajudá-la em seu...