CAPITULO 14

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Minhas pernas já estavam sangrando com as marcas das minhas unhas e eu sabia que teria que usar calças pelo resto da semana, pelo menos. Ah, e eu também quebrei um porta-retrato, mas nem me importei já que não tinha nenhuma foto mesmo. Depois de tudo, ainda tive que aturar o ardor das lágrimas na pele do meu rosto, sem conseguir aliviar de nenhum outro jeito.

Lorenzo me deixava assim. Tudo bem, eu sempre fui um pouco agressiva mas, é como se meus sentimentos estivessem à flor da pele desde que o conheci, como se eu não conseguisse controlar o que eu sinto. De agora em diante, não ia mais ser assim.

Por isso, essa semana decidi mergulhar de cabeça nos estudos, já que entraria em uma semana de provas fodida. Passei tardes e tardes estudando, tentando enfiar tudo de uma vez na minha cabeça. Ao contrário de todos os outros meses, não ansiava pelo fim de semana.

Minha pele já estava cor de papel do tanto que fiquei trancada no quarto nos últimos dias e só saía de casa para ir à terapia, já que minha mãe ficou preocupada comigo. Jenna - minha terapeuta - me aconselhou a sair pra correr para descontar a raiva ao invés de cravar as unhas nas minhas pernas, pois isso era automutilação. Então, na quinta-feira, vesti uma roupa de corrida e saí por aí.

A música estava alta demais no fone, mas não deu conta de silenciar minha mente. Em vez de ficar pensando na matéria de prova, voltei para a realidade do meu próprio mundo. Eu e Mike ainda não chegamos a nenhuma conclusão sobre nossos pais, pois tudo em casa estava perfeitamente normal, como sempre;

Outra coisa era Nora. Comecei a ficar preocupada com ela, pois percebia que ela passava madrugadas chorando, já que chegava na sala de manhã com os olhos vermelhos e inchados. Lembro da última vez em que o quadro de depressão dela subiu e ela estava exatamente assim. Decido ir na casa dela após a corrida, já que ela ainda é minha melhor amiga e eu preciso ajudar de alguma forma.

Já Lorenzo... ele andava tão sumido depois da nossa última briga que algumas vezes parecia que eu voltava para o início do ano, quando ele ainda não morava aqui; porém os poucos momentos em que nos cruzávamos pela casa ou pela escola, não trocávamos nada além de um olhar apressado. Era uma sensação ruim saber que tudo o que tivemos desde julho até agora em novembro, estava desaparecido nesse espaço de tempo.

Você é péssima nesse jogo, ele dissera uma vez enquanto jogávamos Mario Kart na TV.

Cala a boca, respondi, empurrando-o com o ombro e clicando em todos os botões do joystick dele.

Eu te odeio, ele disse, sorrindo.

Te odeio mais, respondi, sorrindo de volta.

Balancei a cabeça, tentando afastar a lembrança, e concentrei-me à rua em minha frente. Corri, corri e corri até meus calcanhares formarem bolhas e eu ser obrigada a voltar pra casa.

Entrei no chuveiro, sentindo os machucados em minha perna arderem e só saí de lá quando não suportei mais a dor.

Coloquei uma calça e uma blusinha e atravessei o espaço entre minha casa e a de Nora, tocando na porta. Isso era estranho. Eu nunca tocava na porta quando nós ainda éramos próximas. Eu entrava, a mãe dela acenava e conversava comigo por uns 10 minutos, depois eu subia para o quarto dela. As lembranças se afastam quando a porta abre.

"Abby?" - Nora está enrolada com um cobertor sobre os ombros e uma caneca na mão, tremendo - "O que tá fazendo aqui?"

"Posso entrar?"

Ela libera a passagem e fecha a porta atrás de si. Caminhamos em silêncio, chegando até a sala de TV fechada. Nós duas sentamos no sofá.

"Você tá bem?" - Pergunto.

"Tô, e você?"

"Não, eu digo... você tá bem mesmo?"

Ela pensa um pouco.

"Não, não estou. Não tem porque esconder isso de você mesmo"

Nós já não éramos mais tão próximas, mas a intimidade é algo que não desaparece, não importa quanto tempo se passe.

"O que aconteceu?"

"Bom, eu..." - Ela hesita - "Estou tentando me livrar das drogas de novo, você sabe como é difícil quando o meu quadro depressivo sobe..."

"Sei" - Respondo - "E o que houve?"

"Bom..." - Ela hesita novamente - "Acho melhor não falarmos sobre isso aqui"

Ela olha para cima, indicando que os pais estão em casa.

"Tem certeza?"

"Sim" - O silêncio ecoa pela sala. Depois de alguns segundos, ela continua - "Olha, bem que eu te entendo agora"

"Como assim?"

"Quando você disse aquelas coisas pra mim, no dia da nossa briga. Só agora eu consegui entender como você estava se sentindo, porque tô me sentindo exatamente assim nesse momento. Ninguém..." - Ela pigarreia - "Ninguém veio atrás de mim, além de você. Na sua vez eu não fui, mas na minha você veio. Por quê?"

"Porque eu sei como você se sentiria caso eu não viesse. Foi como eu me senti" - Ela assente. Penso um pouco e continuo - "Nem mesmo Lena?"

"Nem mesmo Lena" - Ela ergue as sobrancelhas - "Ela nem percebeu, na verdade"

"Sinto muito por isso" - Falo, sincera.

"Tudo bem"

Ficamos num silêncio constrangedor e me levanto.

"Já vou indo, se precisar de alguma coisa estou aqui sempre. Você sabe"

Ela agradece e me leva até a porta.

Me senti realmente mal por Nora, apesar de tudo o que aconteceu entre nós. Mas eu não podia suportar mais um peso em minha vida, então decidi deixar que ela viesse atrás de mim caso necessário, e sei que não seria.

Cansei de deixar que a dor de outras pessoas me afetem sendo que a minha dor não afeta ninguém. Lembro que depois de nossa briga - apesar de termos nos desculpado -, Nora nem ao menos veio procurar saber se eu estava melhor. Não farei isso com ela porque não desejo que ela passe por isso, mas também não vou me permitir pegar a dor dela pra mim, sendo que já tenho minhas próprias dores.

Não aguento mais fazer pelos outros o que eles não fazem por mim, por isso, de agora em diante, começarei a me dar o devido valor.

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