Capítulo XV - Culpa

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Arnold costumava ser um ávido leitor quando criança, lia todos os livros que colocassem diante de seus olhos, mas jamais negaria a afeição que sentia pelos livros de fantasia e romance, eram completamente diferentes de tudo que precisava estudar como um príncipe: todas as regras, instruções, os grandes livros de história e os pouco instrutivos livros de guerra, as análises de filosofia e explicações de geografia, nada trazia a ele tanta alegria quanto um trágico conto de amor verdadeiro com o mais infeliz dos finais.

Ele se lembrava de explicar ao irmão, com tanta empolgação que movia as mãos sem perceber, sobre os olhares trocados, sobre a certeza de que o amor existia na forma daquela pessoa especial, e como o mundo se tornava escuro e sem cor quando este amor desaparecia.

Por duas vezes Arnold sentiu aquele olhar, aquela certeza de que havia encontrado alguém que não poderia deixar ir embora, por duas vezes ele sentiu no peito aquele puxão que dizia que o mundo nunca seria o mesmo se ele perdesse aquele amor.

Mas o mundo não estava escuro e sem cor na noite que Narcisa morreu.

Os detalhes vinham à mente de Arnold como se estivessem acontecendo naquele instante: depois do jantar, Narcisa e ele colocaram Larissa para dormir, Augustus era pequeno e cheio de energia, então deixaram ele dançando com Cordélia no salão até que os dois estivessem cansados demais para manter os olhos abertos – Arnold precisou carregar a filha no colo até seu quarto, e Narcisa aceitou a árdua tarefa de andar com tanta calma que o balanço de seus passos não acordasse o pequeno garoto que demoraria horas para dormir caso seus olhos se abrissem.

Depois que as crianças estavam na cama, Arnold desejou uma boa noite de sono para a esposa e se retirou para seu escritório, tinha assuntos para resolver que não poderia adiar por mais um dia, e Narcisa apreciava ter um tempo sozinha na frente da lareira, tomando uma xícara de chá, enrolada em um lençol feito de retalhos que ela se recusava a abrir mão, e admirando as chamas bruxuleantes – a rainha gostava de formar padrões, tinha uma imaginação maravilhosa e sempre descrevia os mais lindos cenários no fogo.

Arnold não saberia dizer quanto tempo passou no escritório antes de sua concentração ser cortada pelo som agudo de um instrumento musical que ele não conseguia nomear, mas que era exclusivamente utilizado como um alarme, um alerta, um sinal de perigo.

O som o perturbou por vários motivos, afinal era um alerta, mas o que mais o preocupou foi que o sinal não soava distante, como uma invasão vinda da fronteira, e sim de dentro do próprio castelo, de uma das torres do Castelo de Prata.

O ataque foi breve, um grupo pequeno se esgueirou pela segurança do castelo e se infiltrou entre os soldados do reino, provavelmente procuravam por Arnold em seu quarto, mas ele não estava lá, estava ocupado, trabalhando, apenas encontraram Narcisa.

Ela já estava morta quando Arnold a alcançou, jogada no chão, seu sangue manchando seu tão amado lençol de retalhos, seus olhos estranhamente abertos, arregalados, assustados – Narcisa morreu sozinha, com medo.

Se aquela fosse a cena de um livro, o mundo teria parado de girar, as cores iriam escorrer do céu, das árvores, das paredes, como tinta diluída em água.

Se aquela fosse a cena de um livro, o coração de Arnold teria parado de bater quando o coração de Narcisa parou. Ele saberia, deveria saber.

Mas não era um livro, não era um conto fantasioso, nenhum ser mágico ou divino surgiria em uma nuvem de fumaça azulada e devolveria o ar aos seus pulmões, nada fecharia a horrenda ferida em seu peito, nada devolveria às suas veias o sangue que manchava seu vestido claro como uma rosa vermelha assombrosa.

O mundo não parou quando o coração de Narcisa parou de bater, os guardas ainda corriam pelo castelo procurando os temidos infiltrados, e Arnold ainda precisava engolir seu luto e procurar por seus filhos.

Amisterium: O Herdeiro LegítimoOnde histórias criam vida. Descubra agora