Capítulo 28 - Vodka

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Boa noite galera!! Dias muito corridos mas não quis deixar vocês na mão. Durante a semana vou tentar postar mas um.
Boa leitura e se preparem pra passar raiva 😬
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Depois do festival, voltamos ao carro de Betty, damos uma rápida passada na casa dela para reabastecer o cantil e seguimos para a cidade. Estacionamos numa rua qualquer, entupimos o parquímetro de moedas e nos precipitamos avançando trôpegos pela calçada, um do lado do outro, braços entrelaçados, fazendo com que os pedestres desviem de nós, cantando "(You Never) Cal Me When You’re Sober" a plenos pulmões. Completamente desafinados. E quase molhando as calças de tanto rir quando alguém passa por nós e torce o nariz.
Ao passarmos diante de uma dessas livrarias New Age que dão consultas de tarô, reviro os olhos e finjo que nem a vi, feliz da vida por não mais fazer parte desse mundo, graças aos efeitos da vodca. Enfim, livre.
Atravessamos a rua e vamos para a praia. Mais ou menos na altura do Hotel Laguna nos esborrachamos na areia e ali ficamos, completamente tontos, braços e pernas entrelaçados, passando o cantil de mão em mão até esvaziá-lo por inteiro.
— Droga! — resmungo e jogo a cabeça para trás, dando tapinhas no cantil, tentando extrair dele a última gota.
— Fique fria, garota — diz Kevin. — Curta a onda e relaxe.
Mas não quero relaxar. E já estou curtindo a onda. Só quero ter certeza de que ela vai continuar. Agora que minha mediunidade foi para o espaço, faço questão de que ela fique por lá.
— Querem ir lá pra casa? — digo, enrolando a língua, torcendo para que Rose esteja fora, para que a gente possa tomar a vodca que sobrou do Halloween e continuar com nossa festinha.
— Sem chance — diz Bettty, fazendo que não com a cabeça. — Estou um lixo. Acho até que vou largar o carro na rua e voltar engatinhando pra casa.
— E você, Kevin? — digo, quase suplicando, não querendo que a festa acabe. Esta é a primeira vez que me sinto assim, tão leve, tão livre e tão normal, desde que... bem, desde que a Toni foi embora.
— Não vai dar — ele diz. — Jantar em família. Sete e meia em ponto. Gravata opcional. Camisa de força obrigatória. — Às gargalhadas, cai para trás na areia, e Betty se joga por cima dele.
— Mas, e eu? Vou fazer o quê? — Cruzo os braços e olho torto para meus amigos, que riem e rolam na areia, sem nem ouvir o que acabei de dizer.
Na manhã seguinte, embora tenha dormido mais que a cama, o primeiro pensamento ao abrir os olhos é: Minha cabeça não está latejando!
Pelo menos, não do modo habitual.
Depois rolo para o lado e pesco a garrafa de vodca que escondi debaixo da cama, ontem à noite. Dou um gole demorado e fecho os olhos para saborear o quentinho do álcool, primeiro na língua, depois na garganta.
E quando Rose coloca a cabeça para dentro de meu quarto a fim de ver se já acordei, fico em êxtase ao constatar que não vejo nem uma pontinha de aura em torno dela.
— Estou acordada! — Rapidamente escondo a garrafa sob o travesseiro, salto da cama e corro para abraçar minha tia, ansiosa para ver que tipo de energia será trocada entre nós, feliz da vida quando nada acontece. — O dia está lindo, não está? — digo e abro um sorriso, os lábios ainda um pouco anestesiados, custando a obedecer.
Rose olha para a janela, depois para mim.
— Se você está dizendo... E dá de ombros.
Olhando pelas vidraças da varanda vejo que o dia está cinzento e chuvoso. De qualquer modo, não estava me referindo ao tempo. Estava pensando em mim mesma.
Na nova Cheryl. Na versão melhorada de Cheryl. A Cheryl normal, que só vê, ouve e sente o que todo o mundo vê, ouve e sente.
— Esse tempinho me faz lembrar o Oregon... — digo, tiro minha camisola e vou para o chuveiro.
Assim que entra no carro, Kevin olha para mim de cima a baixo e diz:
— Que diabos deu em...
Olho para minhas roupas (minissaia jeans, suéter e sapatilhas de balé; relíquias que Rose guardou de minha vida antiga) e gosto do que vejo, sorrindo.
— Sinto muito, mas não entro no carro de estranhos — ele diz e abre a porta, ameaçando sair.
— Sou eu, juro! Palavra de honra! Até onde eu sei, pelo menos — retruco às gargalhadas. — E feche logo essa porta! Não quero ninguém caindo do meu carro, fazendo a gente se atrasar!
— Não estou entendendo lhufas — continua Kevin, boquiaberto. — Quer dizer, quando foi que isso aconteceu? Como aconteceu? Ainda ontem você praticamente usava uma burca, e agora parece que assaltou o armário de Paris Hilton!
Olho para ele em tom de reprovação.
— Com muito mais classe, claro — diz Kevin.
Sorrio e piso fundo no acelerador. As rodas do Miata derrapam no asfalto molhado e só voltam ao normal quando lembro que não posso mais contar com meu radar interno e Kevin começa a berrar.
— Caramba, Cheryl, que foi que deu em você? Nossa, você ainda está chapada?
— Claro que não! — respondo, talvez um pouco rápido demais. — É que... resolvi sair da concha, sabe? Só isso. Sou um pouquinho tímida nos primeiros... muitos... meses — digo rindo. — Mas pode acreditar. Esta é a Cheryl de verdade. — Só espero que ele caia em minha conversa.
— Mas você tinha de escolher logo o dia mais horrível e mais chuvoso do ano pra sair da concha?
— Pra mim o dia está lindo, Kevin. Você nem calcula quanto. Essa chuva me faz lembrar o Oregon.
Quando enfim chegamos ao estacionamento, paro na primeira vaga que encontro e salto do carro, seguida de Kevin; nossas mochilas fazem às vezes de guarda-chuvas e nossos passos fazem com que a lama respingue em nossas pernas. Ao ver Betty
tremendo de frio, gotejante, minha vontade é de sair pulando de alegria sob uma marquise porque não enxergo aura nenhuma nela.
— Meu Deus, Cheryl, que foi que...— ela diz, olhos arregalados me olhando de cima a baixo.
— Vocês dois precisam aprender a terminar suas frases — brinco.
— Estou falando a sério, quase não a reconheci! — ela exclama, ainda chocada.
Kevin dá uma risada, passa os braços sobre nossos ombros e nos conduz para dentro.
— Não ligue, não — diz. — É que pra Miss Oregon aqui o dia está lindo.
Chegando à aula de inglês, respiro aliviada por não estar vendo ou ouvindo algo que
eu não deveria. Donna e Midgle estão cochichando uma com a outra, fazendo caretas para minhas roupas, meus sapatos, meus cabelos e até minha maquiagem, mas passo direto por elas, na maior tranquilidade. Sei que estão falando horrores a meu respeito, mas não escuto esses horrores, o que faz toda a diferença. E quando as vejo olhando para mim outra vez, sorrio e fico dando tchauzinho até que elas, assustadas, deixam-me em paz.
No entanto, na aula de química, no terceiro tempo, quase não sinto mais a onda do álcool. No lugar dela, uma avalanche de ruídos, cores e visões que por pouco não me sufocam.
A certa altura levanto a mão e peço permissão para sair ao corredor, já completamente sufocada ao atravessar a porta.
Cambaleando, vou para meu armário e tento lembrar a combinação de números paradestrancá-lo.
Será 24-18-12-3? Ou 12-18-3-24?
Olho à volta no corredor, a cabeça latejando, os olhos lacrimejando, e subitamente melembro da sequência correta: 18-3-24-12. Reviro a pilha de livros e papéis, jogando-os no chão sem o menor cuidado, fazendo com que tudo fique em volta dos meus pés, até encontrar a garrafa de "água" que escondi entre eles, já pressentindo o delicioso alívio que está por vir.
Destampo a garrafa, jogo a cabeça para trás e dou um longo gole, seguido de outro, e mais outro, e mais outro. Torcendo para que a onda dure pelo menos até o almoço, dou o último gole quando escuto:
— Espere aí. Sorria. Não? Tudo bem. Já consegui o que queria.
E quase tenho um treco quando viro o rosto e dou de cara com Donna, exibindo a foto que acabou de tirar. Lá estou eu no visor, perfeitamente focada, entornando vodca goela abaixo.
— Quem diria que você é tão fotogênica, hem? É tão raro termos a chance de ver você sem ser escondida debaixo daquele capuz... — ela diz sorrindo, olhando para mim de cima a baixo.
Fico olhando para ela e, embora meus sentidos estejam anestesiados pelo álcool, sei exatamente quais são as intenções da garota.
— Pra quem você quer que eu mande primeiro? Sua mãe? — Donna arqueia as sobrancelhas e tapa a boca como se estivesse horrorizada. — Ai, não, desculpe, meus pêsames. Mas e se eu mandasse para sua tia? — Ou então posso mandar pra um de seus professores, o que você acha? Ou talvez pra todos eles? Não? É verdade, melhor mandar
direto pro diretor, né? Um só coelho, uma só cajadada. Não tem erro. É morte certa, como dizem.
— Isto aqui é uma garrafa de água — digo. Recolho os livros do chão e os jogo de
volta no armário com toda a displicência que consigo fingir, como se não estivesse nem um
pouco preocupada; sei que ela tem muito mais capacidade de captar medo que um cão farejador. — O que você tem aí é uma foto minha bebendo água. Qual o problema?
— Água? — Ela ri. — Sei. Muito original de sua parte, devo acrescentar. Ninguém nunca pensou nisso antes, esconder vodca numa garrafa de água mineral... — Ela revira os olhos. — Ah!, poupe-me, Cheryl. Seus dias nesta escola estão contados. Basta um único testezinho de bafômetro e... Adeus, Bay View; olá, "Escola para Perdedores e Viciados".
Olhando para Donna à minha frente, tão segura de si, tão petulante, sei que ela está com a faca e o queijo na mão, pois me pegou literalmente com a boca na botija. Mesmo que as evidências pareçam apenas circunstanciais, tanto ela quanto eu sabemos que não são.
Ambas sabemos da verdade.
— O que você quer? — pergunto afinal, quase sussurrando. Sei que todos têm um preço, e ao longo do último ano ouvi pensamentos e tive visões suficientes para saber que Donna também tem o seu.
— Pra início de conversa, quero que você pare de me aporrinhar — ela diz, cruzando os braços diante do peito e afundando a câmera sob a axila, longe de meu alcance.
— Mas não aporrinho você — digo, já enrolando um pouco a língua. — É você que me aporrinha.
— Au contraire. — Ela me observa, sorrindo, mas me execrando com o olhar. — Ter de olhar pra sua cara todo santo dia já é uma grande aporrinhação.
— Você quer o quê? Que eu peça transferência pra outra turma de inglês? — pergunto, ainda com a maldita garrafa nas mãos, sem saber ao certo o que fazer com ela: guardar de volta no armário ou escondê-la na mochila. De um jeito ou de outro, Donna vai me dedurar, e a garrafa será confiscada.
— Você sabe que ainda me deve um vestido novo, não sabe? Desde aquele dia em que me atropelou feito uma louca neste mesmo corredor.
Então é isso: chantagem. Ainda bem que ganhei aquele dinheiro todo no hipódromo.
Vasculho minha mochila e retiro a carteira, nem um pouco incomodada em reembolsá-la se for para colocar um ponto final nessa história.
— Quanto é? — pergunto.
Ela me encara durante um tempo, calculando o tamanho do rombo que poderá fazer.
— Bem, como eu disse antes, era um vestido de marca, difícil de substituir, então...
— Cem dólares? — digo e tiro um Ben Franklin da carteira.
Donna revira os olhos e diz:
— Até entendo que você não tenha a menor noção de moda, mas sinto muito, amor, você vai ter de aumentar essa sua oferta. Isso aí não dá nem pra começar — ela diz, os olhos fixos em meu bolo de dinheiro.
Sabendo que os chantageadores nunca se dão por satisfeitos e sempre voltam em busca de mais, acho prudente lidar com isso agora, antes que vá longe demais.
— Olhe só, amor — digo sorrindo, lembrando-me do que vi no dia de nossa trombada.
— Nós duas sabemos que você comprou aquele vestido numa ponta de estoque de beira
de estrada, quando voltava de Palm Springs para casa. Vou reembolsar o que pagou: 85
dólares, se não me falha a memória. Portanto, pega logo esta nota de 100 e pode ficar com o troco.
Ela me olha de cima a baixo, abre um sorriso forçado e enfim pega a nota, guardando-a no bolso. Depois olha de relance para a garrafa em minhas mãos e diz:
— Então, não vai me oferecer um drinque?
Se ontem alguém tivesse dito que hoje eu estaria escondida no banheiro da escola, enchendo a cara com Donna Sweet, eu jamais acreditaria. No entanto, é exatamente isso que fiz. Fomos juntas para o banheiro e nos agachamos num cantinho para entornar uma garrafa de água mineral recheada de vodca.
Nada como dividir vícios e segredinhos para aproximar as pessoas. E quando Betty entrou e nos encontrou assim, arregalou os olhos e disse:
— Que borra é essa aqui?
Dobrando-me de tanto rir, deixei o corpo cair no chão, enquanto Donna, enrolando a língua, os olhos quase fechando, disse:
— Ih. A góxxxxica chegou. Zentaí.
— Por acaso perdi alguma coisa? — pergunta Betty, encarando-nos com uma expressão de desconfiança. — Isso é pra ser engraçado?
Falou de um jeito tão sério, tão autoritário, tão ridículo e tão não divertido que só nos fez rir ainda mais. Depois, pisando firme, saiu do banheiro e bateu a porta. Donna e eu imediatamente voltamos a beber.
No entanto, só porque enchi a cara com ela no banheiro, isso não significa que agora tenho acesso à mesa dos VIP’s. Nem me dou o trabalho de tentar. Vou direto para meu lugarzinho de sempre, tão tonta e confusa que leva um tempinho até eu perceber que não sou bem-vinda ali também.
Despejo o corpo no banco, arrasto os olhos para Betty e Kevin e desando a rir, por nenhum motivo aparente. Pelo menos não para eles. Se os dois pudessem ver a própria cara, aposto que estariam rindo também.
— Que foi que deu nela? — pergunta Kevin, largando o roteiro que estava lendo.
— Está chapada — responde Betty, séria. —Totalmente chapada. Peguei a garota
entornando uma garrafa de vodca no banheiro. E sabe com quem, com tanta gente pra escolher? Donna Sweet.
Kevin deixa o queixo cair e enruga a testa de um jeito tão engraçado que não me contenho: caio na gargalhada outra vez.
E percebendo que não fico quieta, ele se aproxima do banco, aperta meu braço e diz:
— Shhh! — Olhando à volta para ver se ninguém está ouvindo, continua: — Sério, Cheryl, pirou de vez? Caramba! Desde que a Toni foi embora você anda tão...
— Tão o quê? — Puxo o braço com tanta força que perco o equilíbrio e por muito pouco não vou ao chão, mas me ajeito a tempo de ver Betty balançar a cabeça com uma expressão de censura. —Vá, Kevin, desembuche — digo, olhando para ele. — E você também, Betty, desembuche aí. — Mas a língua está tão pesada que as sílabas se misturam num arrastado disimbuje.
— Você quer que a gente disimbuje? — pergunta Kevin. — Tudo bem, mas seria ótimo se a gente soubesse o que isso significa. — Ele vira para Betty. —Você sabe o que quer dizer disimbuje?
— Parece alemão — ela diz, olhando torto em minha direção.
Reviro os olhos e levanto para ir embora, mas as pernas não me obedecem e caio de joelhos no chão.
— Aaaaai! — grito e me jogo de volta no banco, abraçando as pernas, os olhos apertados pela dor que eu sinto.
— Vá, beba um pouquinho disto aqui. — Kevin oferece sua garrafa de isotônico. — E pode ir passando as chaves. Nem morto que eu vou entrar num carro com você nesse estado.
E não entraria mesmo. Kevin volta sozinho para casa, dirigindo o Miata.
E eu com minha tia Rose.
Ela me acomoda no banco do carona, vai para a direção e arranca com o carro. Assim
que atravessa o portão do estacionamento, balança a cabeça, em reprovação, e, muito séria, diz:
— Expulsa? Um dia você está na lista de honra da escola e no outro é expulsa! Como é que se explica uma mudança dessas?
Fecho os olhos e pressiono a testa contra a janela, aproveitando o friozinho do vidro na pele.
— Não fui expulsa — resmungo. — Fui suspensa, lembra? Foi você mesma que conseguiu a redução de pena. Aliás, com muita competência. Agora sei por que ganha
tanta grana como advogada. — Olho pelo canto do olho para Rose, a tempo de ver o efeito das palavras que acabo de dizer: no rosto dela, a expressão de preocupação logo dá lugar a outra, de espanto e ofensa, de um modo que nunca vi. E mesmo sabendo que deveria estar arrasada de vergonha e culpa, a verdade é que... bem, não fui eu quem pediu para ela litigar em minha defesa, alegando circunstâncias atenuantes, dizendo que meu
comportamento deveria ser analisado sob o prisma da gravidade de minha situação, do custo emocional impingido a alguém que recentemente perdeu toda a família.
Ainda que tenha agido de boa-fé, acreditando em cada palavra do que disse, isso não significa que ela tenha dito a verdade.
Pois a verdade é: por mim, ela não teria movido uma palha sequer para impedir minha expulsão.
Quando me pegaram diante do armário, a onda da vodca passou imediatamente e os acontecimentos do dia voltaram à minha cabeça feito o trailer de um filme que eu preferiria não ver: desde o momento em que me esqueci de fazer Donna deletar a foto até a conversa que tive com o diretor da escola, quando soube que a denúncia havia sido feita por Midgle e que Donna havia voltado para casa depois de uma terrível "intoxicação alimentar". Mas não antes de pedir a Midgle que entregasse a foto e relatasse sua "preocupação" ao diretor Buckley.
Devo admitir: mesmo tendo consciência da grande encrenca em que me meti, ou melhor, enorme, e das consequências permanentes que terei de enfrentar (Isso estará para
sempre em seu currículo!), não posso deixar de tirar o chapéu para Donna. Ora, a garota não só cumpriu com a promessa de me destruir, sujando minha barra tanto na escola quanto com minha tia, como também voltou para casa 100 dólares mais rica e ainda por cima livre das encrencas em que se meteria! Isso não deixa de ser admirável.
Pelo menos de um modo calculista, sádico e sinistro.
Por outro lado, graças aos esforços coletivos de Donna, Midgle e do sr. Buckley, amanhã não tenho de ir à escola. Nem depois de amanhã. Nem no dia seguinte. O que significa que terei a casa toda só para mim, o dia inteiro, todos os dias: a privacidade de que preciso para continuar bebendo e exercitando minha tolerância. Pelo menos enquanto Rose estiver no escritório.
Porque, agora que encontrei o caminho para a paz, não vou deixar que ninguém se meta nele.
— Há quanto tempo isso vem acontecendo? — ela pergunta, sem saber como lidar comigo. — Será que agora vou ter de esconder toda a bebida de casa? Colocar você de castigo? — Ela balança a cabeça em desaprovação. — Cheryl, eu estou falando com você! O que deu em você hoje, Cheryl? O que está se passando em sua cabeça? Quer que eu arrume
alguém para ajudar você? Se quiser, conheço um excelente terapeuta especializado em casos de luto como o seu.
Nem preciso virar o rosto para saber que Rose está olhando para mim; sinto na pele a preocupação que emana do rosto dela. Mas fecho os olhos e finjo que estou dormindo.
Afinal, que explicação eu poderia dar? Como despejar nos ombros de minha tia toda essa
história maluca sobre auras, visões, espíritos e ex-namorado imortal? Embora ela tenha contratado uma vidente para o Halloween, fez isso apenas de brincadeira, um modo inocente de animar a festa. Sabine é dessas pessoas que pensam só com o lado esquerdo do cérebro: é racional, organizada, tem um compartimento para tudo na vida, vê as coisas ora em preto, ora em branco, evitando o cinza ao máximo. E se viesse a saber de todos os
meus segredos (caso eu fosse estúpida a ponto de revelá-los), seguramente faria mais do que arrumar alguém para me ajudar, não pensaria duas vezes antes de me internar em um hospício.
Tal como prometido, Rose esconde todas as bebidas alcoólicas da casa antes de sair para o trabalho, mas, assim que ela vira as costas, busco na despensa todas as garrafas de vodca que sobraram do Halloween, que ela havia guardado em uma prateleira alta e das quais nem se lembrava mais. Subo com elas para o quarto e me jogo na cama, feliz da vida com as três semanas inteiras sem aula. Vinte e um dias, longos e gloriosos, estendidos à minha frente como um banquete diante de um gato faminto. Uma semana por causa da suspensão e outras duas por conta das férias de inverno, providenciais. E pretendo aproveitar cada segundo, apenas vendo a vida passar, atravessando os dias num único torpor embalado a vodca.
Recostada no travesseiro, abro a primeira garrafa com a firme intenção de saborear cada gole, deixando que o álcool percorra todo o caminho entre a garganta e a corrente sanguínea para só depois dar o gole seguinte. Nada de pressa, nada de afobação. Apenas um fluxo lento e contínuo de goles até que minha cabeça se acalme novamente e o mundo volte a brilhar. Até que o álcool me transporte a um lugar bem mais feliz do que este. A um mundo sem lembranças. A uma história de vida sem perdas. A um lugar em que vejo apenas o que está lá para ser visto.

para sempre - choniOnde histórias criam vida. Descubra agora