Capítulo 8 - Segunda-feira

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Vejo pessoas mortas. O tempo todo. Na rua, na praia, nos shoppings, nos restaurantes, nos corredores da escola, nas filas do correio, na sala de espera dos consultórios... mas nunca no do dentista. Porém, ao contrário dos fantasmas que a gente vê na televisão e no cinema, elas jamais me perturbam, pedem minha ajuda ou vêm conversar comigo. De modo geral, não fazem mais que sorrir e acenar quando notam que estão sendo vistas. Como a maioria dos vivos, elas adoram ser vistas.

Mas a voz em meu quarto, definitivamente, não era de um fantasma. Também não era de James. A voz em meu quarto era de Toni.

E por isso sei que foi um sonho.

— E aí? — Ela sorri e se senta segundos depois de o sinal tocar, mas, como a aula é do sr. Robins, isso é o mesmo que chegar cedo.

Cumprimento-a apenas com um aceno de cabeça, de um jeito displicente, neutro, como se não estivesse nem aí para ela. Esperando esconder o fato de que, a essa altura, estou tão a fim que até ando sonhando com ela.

— Sua tia parece ser uma pessoa legal — ela diz, olhando para mim e batendo com a caneta na carteira, num irritante tec tec tec.

— É, ela é muito legal — resmungo, furiosa com o sr. Robins, que não sai daquele banheiro, desejando que ele largue o maldito cantil de uísque e venha logo dar sua aula.

— Também não moro com minha família — diz Toni, a voz silenciando a sala, aquietando meus pensamentos, enquanto ela gira a caneta na ponta dos dedos, para lá e para cá, sem deixá-la cair.

Não digo nada. Apenas ajusto o iPod no compartimento secreto do capuz, cogitando ligar a música para bloquear Toni também. Não, isso seria grosseiro demais.

— Fui emancipada — ela acrescenta.

— Sério? — pergunto, apesar de ter prometido a mim mesma limitar nossas conversas ao mínimo necessário. Só que, bem, nunca conheci uma outra emancipada e sempre achei que todos fossem pessoas tristes e solitárias. Mas, a julgar pelo carro que dirige, as roupas que usa e os lugares que frequenta nas noites de sexta, Toni não parece nem um pouco infeliz com sua condição.

— Sério — ela diz. E assim que para de falar ouço os cochichos febrilmente trocados entre Donna e Midge, que me chamam de esquisitona e outros qualificativos bem menos simpáticos que esse. Depois me espanto ao vê-la arremessar a caneta para o alto, sorrindo enquanto a caneta desenha uma série de oitos preguiçosos no ar, antes de aterrissar perfeitamente na ponta do dedo dela.

— E sua família, onde está? — ela pergunta.

Como é estranha essa alternância entre barulho e silêncio, barulho e silêncio, barulho e silêncio... Parece até uma versão nova para a dança das cadeiras, uma versão em que sempre acabo sobrando de pé.

— O quê? — digo, distraída pela caneta que agora paira entre a gente, bem como pelos comentários de Midge a respeito de minhas roupas. Quanto ao namorado dela, bem, o garoto concorda com tudo, feito um cordeirinho, mas ao mesmo tempo se pergunta por que ela, Midge, nunca se veste como eu.

Minha vontade é pôr o capuz, ligar o iPod no volume máximo e dar um fim a essa história toda. Em tudo. Inclusive em Toni. Principalmente em Toni.

— Onde sua família mora? — ela pergunta.

Fecho os olhos enquanto ela fala, saboreando a delícia que são esses poucos segundos de silêncio. Depois volto a abri-los e, encarando-a digo:

— Estão todos mortos. Finalmente o sr. Robins entra na sala.

— Sinto muito.

Toni se senta à minha frente na mesa do almoço, e eu corro os olhos pelo pátio, ansiosa para que Betty e Kevin não demorem a chegar. E quando abro a bolsa com o lanche, vejo o quê? Uma tulipa! Igualzinha à do outro dia, espetada entre o sanduíche e o saco de batatas fritas. Não sei como ela fez isso, mas tenho certeza de que foi Toni quem a colocou ali. Na verdade, não são os truques de mágica que me incomodam, mas o jeito como ela olha para mim, fala comigo, aquilo que me faz sentir...

para sempre - choniOnde histórias criam vida. Descubra agora