Capítulo 25 - Betty voltou

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Quando chego à escola no dia seguinte, paro na vaga de sempre, salto do carro e passo direto por Toni para ir ao encontro da Betty, que espera por mim junto ao portão.
E apesar de toda a minha aversão ao contato físico, planto as mãos sobre os ombros de minha amiga e a puxo para um grande abraço.
— O.K., O.K., eu também amo você. — Ela ri e me empurra para trás. — Caramba, Cheryl, até parece que eu ia ficar bolada com vocês pro resto da vida!
Os cabelos pintados de vermelho estão lambidos e sem vida, o esmalte preto das unhas está lascado, as olheiras estão mais escuras que de costume e o rosto está indiscutivelmente pálido. Embora ela afirme que está bem, não me contenho e avanço para
mais um abraço.
— Como você está se sentindo? — pergunto, examinando-a com atenção, tentando ler alguma informação nela. No entanto, exceto pela aura cinzenta, fraca e translúcida, não consigo ver quase nada.
— O que foi que deu em você, mulher? — ela pergunta, afastando-me dela.— Por que está pegajosa desse jeito? Logo você, que vive se escondendo debaixo de um capuz, ouvindo iPod?
— Fiquei sabendo que você estava doente, e como você não deu as caras ontem... — De repente me sinto ridícula por agir desta forma com a Betty.
— Já sei o que aconteceu — diz Betty, rindo e assentindo com a cabeça. — A culpa é toda sua, não é? — Ela aponta para Toni. — Foi você que derreteu o coração gelado de minha amiga e a transformou numa boboca sentimental, numa manteiga derretida, não foi? Toni ri, mas não com os olhos.
— Foi só uma gripe — ela diz. Kevin lhe dá o braço, e atravessamos juntos o portão. — Mas fiquei muito triste com essa parada da Evangeline, acho que isso me fez piorar muito. Quer dizer, tive tanta febre que até desmaiei algumas vezes.
— Sério? — digo, afastando-me da Toni para caminhar ao lado dela.
— Sério. Foi muito bizarro. À noite eu ia pra cama usando uma roupa, depois acordava usando outra, totalmente diferente. E quando procurava pela roupa que tinha usado antes, não encontrava. Era como se ela tivesse sumido no ar ou algo do tipo,
entende?
— Mas aquele seu quarto é uma zona, né, Betty? — Kevin ri. — Ou talvez você estivesse alucinando. Isso acontece quando se está com muita febre.
— Pode ser. Mas todos os meus lenços pretos sumiram. Tive de pegar este aqui emprestado de meu irmão. — Betty pega a ponta do lenço azul que está usando e o rodopia.
— E ninguém estava em casa para cuidar de você? — pergunta Toni, surgindo atrás de mim. Ela toma minha mão e entrelaça os dedos nos meus, despachando uma onda de calor pelo meu corpo inteiro.
Betty sacode a cabeça, impaciente, e revira os olhos.
— Pra cuidar de mim? É ruim, hem! Sou praticamente emancipada, que nem você.
Além disso, minha porta ficou trancada o tempo todo. Eu podia ter morrido ali dentro que ninguém ficaria sabendo.
— E Peaches? — pergunto, sentindo um frio na espinha só de dizer o nome dela.
Betty olha para mim de um jeito estranho e diz:
— Peaches está em Nova York. Viajou na sexta à noite. Bem, espero que vocês não peguem essa gripe. Ainda que eu tenha tido uns sonhos muito legais, sei que vocês não vão curtir. — Ela para a poucos metros de sua sala e recosta-se na parede.
— Por acaso você sonhou com um cânion? — pergunto, largando a mão da Toni e aproximando-me da Betty, tão perto que ficamos cara a cara.
Ela ri e me empurra para trás.
— Peraí, amiga, você ultrapassou seu limite. Não, não sonhei com cânion nenhum. Só com umas coisas bem góticas, difíceis de explicar. Só sei que tinha muito sangue.
E tão logo ela fala, assim que ouço a palavra "sangue" vejo tudo escuro e sinto o corpo
amolecer, caindo para trás.
— Cheryl! — exclama Toni, amparando-me segundos antes de eu me esborrachar no
chão. — Cheryl... — ela sussurra, sua voz carregada de preocupação.
E quando abro os olhos, que encontram os dela, percebo algo estranho, uma expressão intensa que me parece bastante familiar. Mas se alguma lembrança viria à tona, ela é prontamente apagada pela voz de Betty:
— É assim que começa. Quer dizer, só fui desmaiar um tempo depois, mas tudo começou, definitivamente, com uma vertiginosa tonteira.
— De repente ela está grávida — diz Kevin, para quem quiser ouvir.
— Ah, não estou mesmo — digo, surpresa com minha súbita melhora, agora que estou apoiada nos braços fortes e quentes de Toni. — Não foi nada, juro. — Com certo esforço, fico de pé e me afasto dela.
— Você devia levar essa garota pra casa — Kevin diz a Toni. — Ela não está nada bem.
— Também acho — Betty concorda com a cabeça. — Sério, amiga, você deveria descansar um pouco. Não vai querer passar pelo que eu passei.
Bato o pé e digo que quero ficar, mas ninguém me dá ouvidos. E quando dou por mim, Toni está com o braço em minha cintura, levando-me para o carro dela.
— Isso é ridículo — digo assim que saímos do estacionamento. — Sério, estou bem.
Sem falar na encrenca que a gente vai arrumar se matar aula outra vez.
— Não vamos arrumar encrenca alguma, Cheryl. — Toni me espia de relance, logo
voltando os olhos para o trânsito. — Só para refrescar sua memória: você desmaiou
naquele corredor. Teve sorte de eu estar lá para ampará-la.
— Mas aí é que está! Você estava lá pra me amparar! E agora estou bem. Juro. Quer
dizer, se você estivesse mesmo tão preocupada comigo, deveria ter me levado pra enfermaria da escola. Não precisava me sequestrar.
— Não estou sequestrando ninguém — ela diz, claramente irritada. — Só quero cuidar de você, Cheryl, ter certeza de que está bem.
— Ah, então agora você é médica! — Balanço a cabeça, descrente, e reviro os olhos.
Mas Toni nada diz. Apenas segue adiante pela Coast Highway, passando direto pela rua que leva à minha casa, por fim parando diante de um imponente portão.
— Onde você está me levando? — pergunto, vendo-a cumprimentar a moça da portaria, familiar a mim. Ela sorri e nos deixa passar.
— Minha casa — ela resmunga.
Subimos por uma colina, virando aqui e acolá, até que chegamos a uma rua sem saída e paramos o carro numa ampla garagem vazia.
Puxando-me pela mão, Toni me conduz através de uma cozinha perfeitamente equipada até uma sala íntima, chiquérrima, muito diferente do que se poderia esperar da casa de uma estudante que mora sozinha. Mãos na cintura, corro os olhos pela requintada decoração: o aconchegante sofá de chenile, os abajures lindos, os tapetes persas, a
coleção de quadros abstratos nas paredes...
— Tudo isto é seu? — pergunto. Na mesinha de centro, de madeira escura, vejo diversos livros de arte, velas e uma fotografia minha, emoldurada. — Quando foi que você tirou esta foto aqui? — Examino a foto de perto. Não tenho a menor lembrança de ter sido fotografada por ela.
— Você fala como se nunca tivesse vindo aqui antes — ela diz, acenando para que eu me sente.
— E nunca vim mesmo. — Dou de ombros.
— Veio, Cheryl — insiste Toni. — No domingo. Depois da praia. Aliás, sua roupa de neoprene ficou aqui, está pendurada lá em cima. Agora, sente-se. — Ela dá tapinhas no sofá. — Quero que você descanse.
Deixo o corpo cair nas macias almofadas do sofá, ainda com o porta-retratos nas
mãos, tentando lembrar quando a tal foto tinha sido tirada. Nela, meus cabelos estão soltos,
meu rosto está ligeiramente corado e estou usando um moletom pêssego, que eu nem sequer me lembrava de ter. E, embora esteja sorrindo, meus olhos estão sérios e tristes.
— Tirei naquele dia na escola. Quando você não estava olhando. Prefiro fotos assim, espontâneas. É a única maneira de capturar a verdadeira essência de uma pessoa — ela diz, tomando de volta o porta-retratos e colocando-o sobre a mesa. — Agora feche os olhos e procure descansar enquanto preparo um chá para você.
Dali a pouco ela volta à sala, deposita uma xícara quentinha em minhas mãos e cobre minhas pernas com uma pesada manta de lã.
— Tudo isso é muito bom, mas não é necessário — digo, colocando a xícara sobre a mesa e conferindo as horas no relógio. Se sair agora mesmo, ainda posso chegar à escola para o segundo tempo. — Sério, estou ótima. Acho melhor a gente voltar.
— Cheryl, você desmaiou — ela diz, sentando-se a meu lado, apreciando meu rosto enquanto me faz um carinho nos cabelos.
— Essas coisas acontecem — retruco, envergonhada pelo trabalho que estou dando,
sobretudo quando sei que estou bem.
— Não sob minha supervisão — ela sussurra, deslizando os dedos para a cicatriz em minha testa.
— Não! — exclamo e bruscamente afasto a cabeça antes que ela possa me tocar.
— Qual o problema? — ela pergunta assustada.
— Não quero que você fique gripado também — minto, nem um pouco disposta a admitir a verdade: essa cicatriz é para mim, e só para mim. Um lembrete constante, assegurando que eu nunca esqueça. Por isso não deixei que fizessem uma cirurgia plástica, que "consertassem" minha testa. Não há conserto para tudo o que aconteceu.
Essa culpa é só minha. Essa dor é só minha. Por isso escondo minha cicatriz debaixo da franja.
Mas Toni ri e diz:
— Eu nunca fico doente.
Fecho os olhos e balanço a cabeça, impaciente.
— Só faltava isso. Você nunca fica doente.
Ela pega a xícara na mesa e insiste para que eu beba. Dou um pequeno gole, mas interrompo para dizer:
— Vejamos. Você não fica doente, mata não sei quantas aulas mas só tira dez em todas as provas, pega um pincel e, voilà, reproduz um Picasso melhor que o próprio pintor, cozinha tão bem quanto um chef cinco estrelas, já foi modelo em Nova York antes de se mudar pra Santa Fé, mas depois de ter morado em Londres, na Romênia, em Paris, no Egito... Não trabalha, é emancipada e mora nesta casa deslumbrante que só pode ter
custado muitos milhões de dólares. Tem um carro caríssimo e...
— Roma — ela diz, séria.
— O quê?
— Morei em Roma, não na Romênia, como você disse.
Reviro os olhos.
— Tanto faz. Só estou dizendo que... — As palavras param na ponta da língua.
— Sim? — Toni se inclina em minha direção. —Você está dizendo que...
Engulo em seco e desvio o olhar, subitamente aturdida com uma dúvida que há muito vem me remoendo. Algo sobre Toni, sobre essa qualidade quase sobrenatural que ela tem. Será que é um fantasma, como o James? Não, impossível, todo mundo vê a garota, penso.
— Cheryl — ela diz, e toma meu rosto entre as mãos, virando-me para ela. — Cheryl, eu...
Mas antes que ela possa dizer qualquer palavra, pulo do sofá, jogo a manta no chão e
vou para a porta da sala, nem me dando o trabalho de virar o rosto para dizer:
— Me leve pra casa.
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Nem sei oq dizer sobre esse capítulo...

para sempre - choniOnde histórias criam vida. Descubra agora