Anoiteceu.
Havia treinado esgrima a tarde toda com Luke, e ele não abrandou o nível da luta só porque estávamos... Olha, nem sei o que estávamos fazendo mais. Nós não podíamos parar o duelo, que logo começávamos a nos beijar. Como eu já dissera, havia muita atratividade entre nós, principalmente no estado em que estávamos — molhados e suados. Era como se uma força me puxasse para seus lábios e seus braços, cercando-me — e era difícil resistir. Então, num consenso silencioso, decidimos continuar lutando. Era o melhor para ambos.
Só que a gana de Luke durante nosso combate foi tamanha que acabou por quebrar meu arco favorito, enquanto eu bloqueava suas investidas agressivas.
— Luke! — exclamei, meus olhos baixaram para meu arco em pedaços — Para que tanta violência?
— Desculpe... — ele disse, porém manteve o semblante sério — Mas os monstros, lá fora, não vão ter piedade de você. Precisamos de um arco mais resistente para você, talvez um que não seja de madeira e que, mesmo assim, seja leve e maleável. — e colocou a mão no queixo, um ar pensativo.
Decidimos encerrar o treino e ir tomar banho antes do jantar. No dia seguinte, planejávamos ir ao arsenal, ver se os filhos de Hefesto tinham algo para mim.
Durante o caminho, ficamos conversando sobre Percy, Annabeth e Grover. Como será que estariam?
— Você se preocupa muito com Percy. — ele disse.
— Você se preocupa muito com Annabeth. — eu retruquei.
— Ela é minha irmãzinha! — o loiro argumentou.
"Será que ela sabe disso?" me questionei, porém resolvi não tocar nesse assunto.
— Mesma coisa. Os dois são como irmãozinhos para mim. — expliquei.
Retornamos ao chalé 11, claramente evitando muito contato físico, embora mantivéssemos uma troca de olhares maliciosos. Eu reagia bem ambiguamente em relação a tudo que estava acontecendo entre mim e o Luke. Gostava dele, ele era meu melhor amigo. Sempre esteve comigo, desde que eu cheguei no acampamento. Contudo, eu sentia uma atração muito grande por ele, nunca anteriormente experimentada. Era tudo muito novo para mim. E, para complicar ainda mais a minha situação, ele era teoricamente o principal suspeito de roubar o raio de Zeus! Minha cabeça ia à loucura só de começar a pensar nisso — chegava a latejar de dor.
Depois do jantar, resolvi ficar para a fogueira no anfteatro. Que fique claro: foi por muita insistência de meus amigos! O evento estava bem amuado, ninguém estava no clima de grandes comemorações, muito menos grandes cantorias.
— Vamos lá, rapaziada bonita! — tentava animar Michael. — Vou cantar umas músicas diferenciadas só para animar essa galera hoje! — e brincou com as cordas do violão.
As filhas de Afrodite deram um gritinho "uhuul" em resposta. Ele fazia muito sucesso com elas, era impressionante. Mike começou a tocar, ele ficava muito charmoso tocando violão, eu tinha que admitir. Eu procurava encarecidamente Nancy entre os campistas, porém não havia sinal dela. Nem de Luke. Meu coração palpitou, e minha mente me pregava peças. "E se...?"
Afastei esses pensamentos. Foco completo na missão.
"But I won't hesitate no more, no more
It cannot wait, I'm yours
Hmm, hey, hey..."
Michael entonava melodiosamente uma canção de um cantor americano. O pessoal, em volta da fogueira, acompanhava no ritmo, cantando junto com ele. Eu dei uma desculpa para Helena de que precisava ir ao banheiro, e comecei a procurar Nancy. Primeiro procurei ali em volta, e nada.
So please don't, please don't, please don't
There's no need to complicate
'Cause our time is short
This, oh this, this is our fate
I'm yours...
Eu fitei Mike por um tempo, e ele me distinguiu no meio da multidão que agora havia em volta da fogueira. Nossos olhares se cruzaram pausadamente, enquanto ele terminava de cantar a música. Devia ser uma brincadeira boba...Michael adorava bancar o sedutor... Contudo, tinha certeza que aqueles olhos castanhos estavam fixos em mim.
— Parece que alguém tem um admirador... — brincou uma voz atrás de mim. Era Luke. E estava acompanhado de Nancy. Eu não sabia determinar de onde eles tinham surgido. Apenas estavam ali. Juntos.
A garota limpava o rosto que parecia um pouco molhado. Será que andava chorando? Meu estômago revirou. Eram muitas possibilidades... Já não sabia mais o que pensar, então tentei manter o foco na missão. Decidi que começaria com Mike, inconscientemente evitando o subconsciente de Nancy.
— Não sei do que você está falando. — me limitei a dizer e saí.
Ouvi alguém chamar meu nome, mas ignorei, pois não suportaria permanecer ali — meus olhos ardiam, loucos para chorar. Fui para um canto escuro entre os chalés 6 e 7, e ali permaneci até a cantoria acabar. Recusei-me a chorar. Sabia explicar por que queria chorar? Não fazia ideia. Se era por Luke, Nancy, Mike, Percy ou Annabeth — eu já não podia mais dizer. A única coisa que me prendia era a certeza que, na calada da noite, enquanto todos estivessem dormindo, eu invadiria a mente de Michael para obter respostas. Isso me mantinha em pé. Firme.
Quando todos foram se recolher, tomei cuidado para ter certeza de ver Michael entrando na cabana. Aguardei ansiosamente até sentir todos os 12 filhos de Apolo dormindo. Isso já devia ser de madrugada. Entrei pela janela entreaberta, na lateral do chalé, bem próxima de onde eu estava. O piso deles não rangia como o piso do chalé 11. Ele era lustroso e escorregadio. Então, fui furtivamente andando pelo quarto. Havia 6 beliches no total — estavam com lotação máxima. Eu fui direto para a cama de Mike, eu já tinha estado ali com ele, sabia bem onde era.
Michael roncava, em um sono profundo. Eu segurei o riso, ele não era nada charmoso dormindo — dormia todo esparramado, as cobertas jogadas longe... Uma bagunça aquela cama. Eu me aproximei e me agachei. Delicadamente, coloquei o dedo em sua testa.
No mesmo instante, senti mergulhar num buraco negro, como em uma montanha-russa, até atingir a queda livre. Segundos, minutos passaram-se? Eu não fazia ideia! A passagem do tempo ficava muito esquisita dentro de um sonho. Desta vez, aterrissei direto num bolsão de areia fofa. Parecia areia de praia. Esperei os vultos ao meu redor tomarem forma, lentamente.
Eu estava numa praia lotada. Porém, não era nenhuma que eu conhecesse. Aproximei-me de uma placa que dizia "Praia de Waikiki". Opa, eu já tinha ouvido falar disso! Michael era nascido no Havaí, ele veio fugido para o acampamento aos 15 anos, quando foi atacado por uma sirena durante o surf. O monstro havia matado sua irmã, que surfava junto com ele.
Sirenas eram uma mistura do corpo de uma mulher com asas de pássaro. Elas costumavam cantar músicas para atrair marinheiros para as rochas. Eram filhas do rio Aqueló e da musa Calíope. Moravam na ilha de Anthemusa, porém, com a mudança do Olimpo de lugar, elas passaram a morar majoritariamente no Havaí.
Comecei a procurá-lo dentro do mar e facilmente o achei, surfando. E, graças aos deuses, estava vestido com uma bermuda florida. Ele parou ao lado de uma garota que parecia ser muito bonita (não via o rosto dela de longe), usava um biquíni rosa. Os dois conversavam, cada um sentado em sua prancha dentro do mar.
Ele ainda não tinha me visto, portanto estava na vantagem. Desejei me transformar novamente em Alecto, meu corpo formigou. Meus braços e pernas acinzentaram-se. Asas cresceram das minhas costas. Disparei com velocidade e arrebatei Mike, que caiu da prancha. A garota gritou. Dei outra investida contra Mike, que estava se recuperando, subindo em cima da prancha. Segurei ele pelos ombros com minhas pernas (ou seriam patas?) e tomei altitude. Uma altitude que ele não sobreviveria se caísse.
— Onde está o raio, ladrão? — grunhi.
— Ladrão não! — ele se debatia, tentando escapar. Eu cravei mais as garras, perfurando sua pele, ele começou a sangrar. Senti um pouco de dó em fazer isso. "É só um sonho, um sonho ruim, apenas um sonho..." repeti para mim mesma.
— Não me faça perguntar de novo! — gritei e afundei ainda mais as garras. Ele gemeu de dor.
— Eu não sei... — ele disse, já com certa dificuldade — Não sei do que você tá falando.
Eu urrei, fingindo estar possessa. Mergulhei em direção ao mar e larguei-o de uma altura em que seu corpo não se despedaçaria, perto da prancha onde estava a menina. Então, virei-me para ela. Encarei-a estática por alguns segundos, enquanto ela gritava de pavor ao me ver.
Ela era eu. Ou melhor, o seu rosto era muito parecido com o meu, contudo o corpo era de uma mulher adulta. Tinha peitos maiores que os meus; uma bunda e coxas carnudas, lisas, douradas de sol. Ela era incrivelmente linda. E gostosa.
Mike chegou nadando, era um excelente nadador. Coloquei minhas garras no pescoço da eu-gostosa e apertei. Ela deu um gritinho agudo e começou a sufocar, debatendo-se enlouquecidamente. Michael apoiou-se na sua prancha, que ainda estava boiando no mar e berrou:
— NÃO!!
— Eu vou perguntar só mais uma vez, heroi, onde está o raio? — eu falei, entre os dentes, e tentei dar meu melhor olhar mortífero.
— Eu... Eu... — Michael não conseguia falar.
Os lábios eu-gostosa foram se tornando roxos — ela estava se asfixiando! Mike encarou-me desesperado. Sua cara era de puro pavor.
— Não fui eu quem roubei! — exclamou, aflito.
— Quem é o ladrão? — eu indaguei, comprimindo mais intensamente o pescoço da eu-gostosa. Ela parou de se debater e finalmente perdeu a consciência. Estava morrendo em meus braços.
— Eu não... — os olhos de Mike suplicavam para mim que soltasse a mulher. — Solte ela, e eu conto a você quem foi. — falou, desviando o olhar.
Eu larguei o pescoço da eu-gostosa e a desci até sua prancha, deitando-a com cuidado. Ela ainda estava respirando. "Ufa". Virei para Michael e disse, firmemente.
— Michael, quem roubou o raio de Zeus?
O garoto comprimiu os lábios, como se aquilo fosse a coisa mais difícil de dizer. Meu coração atormentado batia descompassado. Não podia ser verdade, eu não queria acreditar...
— Fo-foi...
Subitamente, os prédios e a água balançaram intensamente. Uma gritaria veio da praia, todos correndo de um lado para o outro. Será que era um terremoto? O céu ficou da cor vermelho-sangue. Uma onda gigante começou a se formar no horizonte.
— Quem está aí? — reverberou uma voz fria, maligna e profunda, que parecia vir das profundezas do oceano. Sentia a presença de algum ser dentro do sonho de Michael. Algo estava errado. Bem errado.
A onda foi ganhando altitude e velocidade. Ia matar todos nós afogados! Tentei controlá-la, entretanto ela não obedecia aos meus comandos. Voei o mais alto que pude, porém não consegui escapar, eu fui engolida para o fundo do mar. Afundei.
Despertei praticamente sem ar. Respirei fundo, enchi os pulmões e senti o prazer que era ter ar para respirar. "O que foi aquilo?". A cabana inteira dormia, não havia mais ninguém além dos filhos de Apolo — e eu. Estremeci só de lembrar daquela voz do sonho...
Olhei para baixo, lá estava Michael — seu rosto todo contraído e sua respiração, acelerada. "Tadinho...". Encostei o dedo de novo em sua testa suada, e pensei em coisas boas — como a cantoria na fogueira, surf, aulas de esgrima e garotas... Seu rosto foi abrandando até que, finalmente, com um longo suspiro, ele sorriu enquanto dormia.
Saí o mais rápido que pude do chalé 7, pela porta de entrada mesmo. Fui direito para a minha cabana. Estava exausta, e já até amanhecia no horizonte.
— Foi visitar o namorado? — perguntou uma voz atrás de mim, quando eu finalmente poria os pés no chalé 11.
Essa voz...
— Luke? — Virei-me e dei de cara com seu corpo, bem próximo ao meu — O que faz acordado a essa hora?
— O que faz acordada a essa hora? — ele falou, com um sorriso sedutor.
— Não vale, eu perguntei primeiro! — exclamei, em voz baixa.
Seu rosto estava muito próximo, podia sentir sua respiração. Também podia sentir seus batimentos — estavam acelerados, igual aos meus.
— Eu tinha... umas coisas para resolver — disse ele, mordendo os lábios.
— Eu também tinha coisas para resolver — falei, praticamente hipnotizada, presa naqueles olhos azuis.
— Na cabana de Mike? — ele arqueou a sobrancelha.
—- Isso... com Mike... — eu sussurrei, provocando-o.
— Hm... — o loiro pegou na minha mão e veio subindo pelo meu braço, até chegar no meu rosto. Começou a acariciar a minha bochecha. — Não gosto disso.
— Não gosta do quê? — indaguei, fingindo que não tinha entendido.
— Você e o Mike. — ele tirou uma mecha de cabelo da frente dos meus olhos e colocou atrás da minha orelha.
— Não existe eu e o Mike, Luke — eu respondi, encarando no fundo de seus olhos.
Ele sorriu.
— Bom, bom... — e me beijou. Sua mão estava agarrada na minha nuca, enrolada em meus cachos.
Começou como um beijo calmo e tranquilo, mas foi aumentando de intensidade, à medida que ele puxava com mais força o meu cabelo. Sua língua corria pela minha boca, enroscando-se com a minha. Com a outra mão, ele percorreu o meu corpo e parou na minha bunda, apertando com luxúria. Novamente, senti um volume vindo do seu ventre, quente e endurecido.
Ele me puxou pelos cabelos para longe e, sorrindo maliciosamente, disse:
— Vamos deitar, tá tarde...
Deixei que ele guiasse até a sua cama, desviando cuidadosamente dos colchonetes no chão. Impressionante como Luke conseguia fazer eu me esquecer de tudo. Missão, raio, voz misteriosa do sonho do Mike — tudo não fazia mais sentido.
Deitei-me. Ele deitou ao meu lado e nos cobriu. Envolveu-me em seus braços, acariciando meus cabelos até eu adormecer.
***
Despertei, devia ter dormido por no máximo 1h. Por milagre dos deuses, Luke dormia do meu lado, com a boca entreaberta, babando. Eu achei a coisa mais fofa do mundo, como eu era boba!
Sentia que ninguém mais tinha acordado. "Ótimo!" pensei enquanto me levantava. Não havia ninguém para me flagrar dormindo com Luke, assim isso não viraria a próxima fofoca do momento.
— Aonde pensa que vai, mocinha? — resmungou Luke e me puxou de volta, abraçando-me.
— Luke, se alguém acordar e vir a gente... Vão pensar... — sussurrei.
— Vão pensar nada. — continuou resmungando, sonolento.
Com muitos esforços, consegui me desvencilhar de seus braços (mesmo não querendo). Ergui-me a tempo do som da trombeta tocar.
Todos levantaram. Marchamos até o refeitório, como sempre fazíamos. Mike apareceu em nossa mesa e se sentou ao meu lado, bocejando.
— Noite difícil? — perguntou Luke.
O garoto assentiu, dizendo:
— Tive um sonho esquisito...
Eu engasguei com o café quente na mesma hora, tossindo. Tinha receio que Michael contasse o seu sonho para alguém e ficasse muito suspeito. Mas, ao invés de continuar falando, ele prontamente começou a dar palmadinhas nas minhas costas.
— Tá tudo bem, gatinha?
— Tá...
— Eu tive sonhos ótimos — o loiro disse, encarando-me com o canto do olho.
— Cara, me conta seu segredo — falou Mike, suspirando — Essa noite eu sonhei que...
— Vocês souberam da maior? — interrompeu Jennifer, sentando-se ao lado de Luke. "Graças aos deuses, obrigado Jen" pensei. Nós negamos com a cabeça. — Está todo mundo falando sobre isso! O raio de Zeus foi roubado!
Engasguei novamente com meu café, queimando minha garganta. Comecei a tossir, Mike novamente deu palmadinhas nas minhas costas.
— Como assim, Jen? — Luke fingiu incredulidade.
— É o novo boato... Zeus acusa Poseidon de ter roubado o Raio Mestre, ou melhor, acusa Percy Jackson!
— Que bobagem! — Exclamei. Todos os olhares voltaram-se para mim, eu resolvi reiterar — Percy nunca faria uma coisa dessas...
— Como você pode ter tanta certeza? — os olhos do loiro brilharam ao falar tal frase.
Eu me calei. Certeza, certeza, não tinha. Porém minha intuição dizia que ele era inocente. Assim como minha intuição dizia que Luke era inocente.
— Parece que vai ter uma ameaça de Guerra Geral se o raio não for devolvido até o solstício de verão, daqui a 8 dias. — continuou Jen. — Os outros chalés já estão se mobilizando, precisamos fazer alguma coisa — e fitou Luke.
— Fazer alguma coisa? — eu repeti, confusa.
Mike e Luke trocaram olhares apreensivos.
— Hermes nunca toma partido nessas guerras, Jen — explicou o loiro — é importante o mensageiro ser neutro.
— Mas não podemos deixar essa acusação barato! — Jennifer rosnou, batendo o punho na mesa, com um olhar sanguíneo. — Quem o Senhor dos Céus pensa que é?
— Jen, calma... — eu disse, um pouco assustada com sua reação.
— Os filhos de Apolo são sempre leais ao Senhor dos Mares. — falou Michael, muito mais sério do que de costume — Melhor eu ir para minha mesa, organizar meu grupo... — e saiu.
— Jen, você é uma indeterminada, não precisa seguir o que nós, filhos de Hermes, faremos — explicou meu amigo — Você pode tomar partido como quiser.
Ela deu um sorriso, como se estivesse planejando algo maquiavélico e saiu também.
— Mas o que está acontecendo? — perguntei a ele.
— Você realmente achou que uma guerra entre os deuses não ia chegar aqui no acampamento...— Luke respondeu, olhando para os lados.
O refeitório estava caótico. Um burburinho alto vinha da mesa de Ares: Clarisse instigava os irmãos e eles gritavam em resposta. Nas mesas de Afrodite e Apolo, também se ouviam vozes alteradas. Por outro lado, na mesa de Atena, os seus filhos cochichavam em um pequeno grupo.
— Você pode tomar partido também se quiser, é filha de Morfeu — disse o loiro.
— Meu pai não gostaria que eu tomasse partido nenhum — expliquei — Ele também trabalha como mensageiro dos deuses.
Nós dois nos encaramos. Luke parecia calmo e tranquilo, como sempre, enquanto eu estava apreensiva e nervosa. Meu tempo estava acabando. Noite passada tinha chegado tão perto...Se não fosse aquela voz que invadiu o sonho e me expulsou de lá. Alguém não queria que eu descobrisse quem era o ladrão de raios.
Depois do café-da-manhã conturbado, o loiro me levou ao arsenal, para escolher um novo arco.
— Não posso fazer um novo arco-e-flechas para você — explicou Chris, meu amigo e filho de Hefesto — Com toda essa função de guerra entre os deuses, temos muitos pedidos de armas para fabricar... Sinto muito... — e fez uma cara de chateado — Mas você pode escolher um dentre os que já temos pronto!
— Tudo bem, Chris, eu entendo — disse, mas era mentira, eu simplesmente não entendia mais o que estava acontecendo.
"Como essa guerra tomou essa proporção tão rápido!? Até ontem ninguém sabia de nada..." pensei, enquanto olhava os arcos que Chris me mostrava.
— Muito frágil essa madeira, num golpe só uma espada quebra isso aqui. — falou Luke, examinando os arcos para mim.
Demoramos 1h avaliando os arcos-e-flechas que estavam disponíveis, pois o loiro colocava defeito em todos! Era engraçado... E fofo, ao mesmo tempo. Quando finalmente decidimos, agradecemos a Chris e fomos para o bosque treinar com o novo brinquedinho. Entretanto, eu não estava concentrada o suficiente. Estava angustiada, muito angustiada. Inclusive, errei alguns alvos e quase dei uma flechada em Luke, que esquivou bem a tempo.
— Ei! Onde você está com a cabeça? — resmungou ele, aproximando-se de mim.
Minha cabeça latejava, e a luz do sol parecia fazê-la piorar. Meus pensamentos giravam em volta de mim: a voz no sonho de Mike; Mike sabia quem era o ladrão; o boato do ladrão de raios e sua repercussão estrondosa; o trio partira há 3 dias e não dera nenhum sinal de vida; meu amigo Luke sendo o principal suspeito de causar uma conspiração com repercussões bélicas mundiais e, ainda por cima, para piorar toda situação, eu estar completamente apaixonada por ele.
— Els? Els? Eleanor? — ele me chamou, balançando-me, eu devia estar com uma cara deplorável.
— Oi, quê? Que foi?
— Que foi pergunto eu, você está estranha... — ele abaixou meu arco-e-flechas e espiou de canto para os lados. Estávamos rodeados de ninfas, curiosas.
— Eu só... — hesitei, pensando numa rápida desculpa — Estou nervosa com essa coisa de 8 dias para a Guerra Geral.
— Calma, Percy está indo para o Mundo Inferior resgatar o raio — ele sussurrou, imagino que fosse para as ninfas não ouvirem — Eu confio naquele garoto! E você lembra que a profecia dizia que ele iria devolver o raio para seu verdadeiro dono?
— Hm... Não confio muito em profecias... — mordi o lábio, aflita, guardando a flecha que estava na minha mão — Não queria lutar contra meus amigos.
— Você não precisa lutar, é a única filha de Morfeu determinada. Como você mesma disse, ele normalmente fica neutro nos conflitos — e ele pegou na minha mão, alisando-a.
— Eu não queria que meus amigos lutassem entre si! Eu não queria essa guerra... — exclamei, claramente abalada.
— Tem coisas que não podemos evitar... — disse.
Ele insistiu para que continuássemos o treinamento, que era importante eu me acostumar com o arco-e-flechas novo antes de eu realmente precisá-lo. E Luke tinha razão. Talvez eu logo precisasse dele. Não sabia o que estava por vir.
A única coisa que me arriscava em prever, neste momento, era a chuva. Uma tempestade se aproximava do Acampamento Meio-Sangue — as nuvens estavam extremamente carregadas. De longe, ouviam-se os trovões e via-se o clarão dos raios cortando o céu.
E não tardou a acontecer. Água começou a literalmente despencar dos céus quando estávamos retornando ao refeitório para almoçar. Tentamos correr, contudo logo o bosque tornou-se um local extremamente escorregadio, altamente propenso a quedas aos mais afoitos e desavisados. As ninfas se recolheram, com receio da violência da chuva, que estava tão forte ao ponto de machucar em contato com a pele.
— O que ele quer? Percy não está mais aqui! — gritei para os céus, indignada, enquanto recebia o "presente" de Zeus.
— É um aviso... Para nós... — falou Luke, com um olhar sombrio, cerrando os punhos. — Como são arrogantes e prepotentes!
— Calma, Luke — eu segurei a sua mão — Alguns deles são, mas outros não...
— Alguns deles são? Alguns deles são? — indagou o loiro, revoltado — TODOS eles são! Como você não vê isso? Como pode ser tão ingênua?
— Como você pode ser tão amargurado? — rebati.
Ele revirou os olhos e deu um suspiro. Seguiu andando na minha frente, em completo silêncio. A chuva era tamanha e tão incontrolável, que o vento forte arrancou o telhado do refeitório. Assim, tivemos que comer nos chalés. Era melhor assim, pois a rivalidade entre os chalés de Ares e de Atena estava só aumentando — uma vez que o chalé de Ares estava do lado de Poseidon e o chalé de Atena estava do lado de Zeus. Os ânimos estavam entrando em ebulição.
Fiquei pensando o que Annabeth faria se estivesse aqui. Será que ficaria mesmo contra Percy? Parecia-me mais provável que não... O que sua mãe acharia disso?
Luke, por sua vez, ficou taciturno desde nossa pequena discussão no bosque. Evitava até cruzar olhares comigo. Isso me incomodava um pouco, porém não tinha tempo para essa bobagem adolescente. Tinha que encontrar o ladrão de raios!
Passamos o dia trancados nos chalés, foram ordens de Quíron. A magnitude do temporal nos impedia de sair para treinar. Rapidamente formou-se uma roda no chalé 11 e os meninos começaram a jogar pôquer. É por isso que eu amava os filhos de Hermes — "O mundo está desabando lá fora? Há uma iminência de guerra em 8 dias? Que se dane! Bora jogar um pôquer, rapaziada!"
A primeira a fugir do chalé foi Jen, provavelmente ela não concordava com a passividade dos filhos do Deus dos Ladrões. Luke também desapareceu e eu nem vira ele sair — como sempre muito escorregadio... Até demais...
Assim, decidi que precisava fazer alguma coisa, não podia ficar parada o dia inteiro enquanto o mundo se revolvia na minha frente. Escapei pela porta de trás, torcendo para todos estarem distraídos demais com o jogo para me notar sair. Parti em direção ao chalé 7, obstinada a interrogar Mike.
Em dois segundos (talvez menos), a chuva encharcou-me de uma maneira, que meus sapatos faziam ploc, ploc toda vez que eu pisava no chão. Era irritante. Corri até a cabana dos filhos de Apolo. Eu era a única no pátio naquele momento. Era estranho ver aquele lugar tão vazio no meio da tarde. Comecei a ficar com dificuldades de enxergar, pois tinha água demais nos meus olhos.
Cheguei no chalé de Apolo, havia uma movimentação excessiva lá dentro. Torci meus cabelos e chamei:
— Mike! Mike!
— Ele não está — disse Lea, outra filha do Deus do Sol — Saiu, disse que tinha uma urgência para resolver.
"Uma urgência?"
Agradeci Lea pelas informações e saí andando. Sem rumo. Primeiro, o boato do roubo do raio se espalha, ninguém sabe como... Luke some... Michael some... Lembrando que Mike nitidamente parece saber quem roubou o raio... Não podia ser coincidência.
***
À noite a chuva amainou, embora ainda seguisse a cair. Eu esperei Luke voltar ansiosamente. Tinha decidido que, na próxima vez que o visse, questionaria-o sobre o raio. Era isso. Vamos acabar com esse drama. Entretanto, ele não apareceu nem para o jantar.
Também tinha decidido que visitaria Nancy, filha de Afrodite, essa noite. Algo me dizia que ela estava escondendo alguma coisa.
Esperei todos adormecerem, deitada na minha cama. O barulho da chuva caindo tentava-me a dormir. Havia uns 3 dias que não sabia o que era descansar direito, estava exausta. Quando eu saí, Luke ainda não tinha retornado. Fiquei apreensiva. Se Nancy não estivesse no seu dormitório, podia inferir que estavam juntos... O que será que fariam juntos, sozinhos, de noite, com essa chuva? Minha mente distorcia os fatos. Tentei afastar esse pensamento enquanto caminhava sorrateiramente pelo pátio.
Graças aos deuses, a filha de Afrodite dormia tranquilamente em sua cama, no chalé 10. Suspirei, aliviada. Aproximei-me de sua cama, entrando pela janela entreaberta. Encostei meu dedo indicador em sua testa. Eu fechei os olhos e respirei fundo.
Fui sugada para dentro, na mesma montanha-russa que se transformava em queda livre. Fui caindo, caindo... Dessa vez, ajeitei-me e, quando a escuridão dissipou-se e soube que estava chegando, dei uma cambalhota no ar e aterrissei de pé no solo. Aguardei algum tempo até o cenário tornar-se nítido.
Eu estava num gramado de uma casa, provavelmente no subúrbio de uma cidade americana. Parecia que tinha recém amanhecido. O cheiro de café passado e bacon frito me atraía para a cozinha daquela moradia. Era uma casa de dois andares, parecia ser grande. Pelos barulhos, eles tinham crianças pequenas.
Pulei a cerca e entrei no pátio, indo em direção aos fundos furtivamente. Espiei pela janela e vi uma mulher fritando bacon e fazendo ovos mexidos. Ela tentava fazer isso enquanto duas crianças corriam à sua volta. Pareciam ter 4 e 7 anos.
— Louis! — Gritou a mulher. Ela era baixinha, com as bochechas rechonchudas, devia ter uns 40 anos — Tire as crianças daqui! Estou tentando cozinhar!
Um homem surgiu no cômodo, eu me abaixei para que ele não me visse. Depois que ele passou, voltei a espiar.
— Claro, meu amor! — Disse ele, sorrindo. O homem era alto e forte, tinha um sorriso encantador. Entretanto, as rugas no seu rosto denunciavam sua idade — devia ter uns 50 anos.
— Papai! Mônica! Vocês viram o meu casaco preto? — perguntou uma voz que eu identifiquei facilmente. Era Nancy. Ela apareceu na cozinha.
Ela parecia mais jovem, devia ter uns 15 anos. Continuava linda e adorável como sempre. Aquela beleza estonteante que apenas as filhas de Afrodite tinham. A pessoa chegava a ficar hipnotizada. E realmente, eu demorei alguns segundos para voltar a raciocinar direito.
— Não sei, não vi, filha — Louis aproximou-se da garota e beijou a sua testa — Bom dia!
Ah, eu lembrava bem dessa história... É uma história muito triste, na realidade. Nancy tinha uma vida perfeita: um pai que a amava, uma madrasta legal, dois meio irmãos pequenos, era a garota mais popular da escola, essas coisas... Até que um dia, eles adotaram um gato de rua que rondava a sua casa, que veio a se transformar no Leão de Nemeia. A fera não mediu escrúpulos, ela atacou a família de Nancy — apenas a garota conseguiu escapar com vida. Desde então, ela mora no acampamento por tempo integral.
Eu já sabia o que tinha que fazer. Desejei me transformar no gato de Nancy. Minha pele formigou, eu encolhi e bigodes cresceram no meu rosto. Meus braços e pernas viraram patas e eu ganhei uma cauda. Pulei pela janela aberta e entrei pela cozinha. A garota arregalou os olhos no mesmo instante.
— Fique longe da minha família, seu monstro! — ela bradou e magicamente surgiu uma espada em seus punhos.
— Nancy, querida, é só um gatinho... — Falou Mônica.
A garota não deu ouvidos, avançou contra mim com sua espada e eu tive que esquivar rapidamente, antes que ela me matasse. Precisava tomar medidas drásticas. Desejei me transformar no Leão de Nemeia. Minha pele formigou novamente, eu cresci bastante em altura, senti a juba crescendo em meu rosto. Nancy atacou e eu não precisei fugir — meu couro era impenetrável. A menina olhou com desespero quando a espada afiada não fez nenhum estrago em mim.
Eu rugi. Meu rugido era simplesmente arrebatador. Todos me encararam, completamente aterrorizados. As crianças pequenas começaram a chorar, assustadas.
— Eu vou perguntar só uma vez... — eu disse, com uma voz grave e masculina — Quem roubou o raio?
Nancy puxou todos da sua família para perto e se interpôs entre mim e eles.
— E-eu não sei do que você está falando... — respondeu ela.
Rugi novamente. Notei as pernas bambas do pai de Nancy, totalmente amedrontado.
— Resposta errada! — exclamei. Tinha aprendido com Mike que é sempre mais fácil quando se tem um refém.
Dei uma patada em Nancy, ela voou longe e bateu com as costas na parede. Olhei para aquela bonita família e resolvi começar com o menor. Peguei o pequeno de mais ou menos 4 anos, que esperneava.
— NÃO! — gritou a filha de Afrodite, levantando-se — Ele não, por favor! Leve a mim! — e lágrimas começaram a escorrer do seu rosto.
Senti-me mal por toda tortura psicológica que eu estava fazendo essa menina passar. Ela estava revivendo seu maior trauma. Porém, eu precisava saber. A paz do mundo dependia disso.
— Vou perguntar mais uma vez, quem roubou o raio?
Nancy encarou-me, absolutamente desesperada. Ela se ajoelhou na minha frente, estupefata. Abriu a boca lentamente e disse:
— Foi...
Então, aconteceu. Ouvi trovões lá fora, e o céu ficou vermelho-sangue de novo. Depois, o chão começou a tremer tão intensamente, que uma cratera se abriu no meio da cozinha da família Williams, separando-me do resto das pessoas da casa. O buraco era fundo e um vapor emanava lá de dentro.
— Filha de Morfeu, como ousa? — disse aquela mesma voz do sonho de Mike, fria e maligna, que vinha de dentro do abismo. — Como ousa desafiar-me?
O chão continuava tremendo. Os armários começaram a cair das paredes, os outros móveis começaram a quebrar. A rachadura foi crescendo em extensão, rachando as paredes da casa.
— Quem é você? — gritei para dentro do buraco. Foi nesse momento que eu percebi que tinha voltado a ser eu mesma.
Um riso frio e maquiavélico ascendeu do abismo.
Eu comecei a ser sugada para fora da casa. Fui lançada para longe e entrei no buraco negro novamente. Ele estava me expulsando! Isso é um absurdo!
— Eu sou a filha de Morfeu! Quem controla esse sonho sou EU! — bradei, e fiz força para resistir a ser atirada para fora desse sonho.
Eu estava na completa escuridão, fazendo cabo-de-guerra com uma força de origem misteriosa. Comecei a gritar, fazendo muito esforço e caí. Despenquei, batendo com a cabeça em algo que se mostrou ser a raiz de uma árvore. Estava em um bosque... Eu conhecia aquele lugar! Era a mata do Acampamento Meio-Sangue. Eu ainda estava no sonho! Tinha vencido aquela batalha!
Saí andando à procura de Nancy. Iniciei minha investigação seguindo as vozes que eu estava ouvindo. Esgueirei-me entre os arbustos, para me manter escondida, e visualizei a garota: estava com a roupa do acampamento — linda como sempre. Conversava com alguém, mas eu não conseguia ver seu rosto, estava oculto por uma sombra.
— Eu já disse para você, Nancy, vai dar tudo certo. É só seguir o plano. — disse a voz da pessoa oculta, era masculina, porém eu não a reconheci.
A garota cruzou os braços, aflita.
— Não sei, não...
— É só você contar para alguma de suas irmãs que elas dão conta de espalhar para todo mundo a fofoca...
— Aí vai ficar bem na cara que fui eu que comecei o boato! — exclamou a garota, nervosa. — Eu não sei se quero continuar participando disso...
— Que isso, querida, não exagere... Eu só preciso que você espalhe a fofoca que o Raio-Mestre foi roubado, só isso... — ele falou numa voz suave e acariciou seu rosto.
Ela colocou a mão no rosto dele, aproximando-se. E ela entrou para dentro da sombra, junto com ele. Pelos estalos, deveriam estar se beijando...
Eu estava afoita. Esse só podia ser o meu ladrão! Quem mais gostaria de espalhar o boato do raio roubado? Quem mais saberia do raio roubado? Finalmente eu descobri! Enquanto eles beijavam, eu comemorava internamente e em silêncio a minha descoberta. No meio da minha euforia, quebrei um galho, fazendo um ruído.
— O que foi isso? — o garoto a afastou um pouco e finalmente saiu das sombras.
Meu queixo caiu.
Não podia ser verdade. Isso era só um sonho, não era uma memória.
— Não ouvi nada, Luke — respondeu Nancy, puxando o rapaz para perto e beijando a sua bochecha, bem próximo a sua boca.
Desejei simplesmente sumir. O sonho me obedeceu e começou a me puxar para fora daquele lugar. Em poucos segundos, estava no chalé de Afrodite, ajoelhada no chão, completamente ensopada por conta da chuva — ao ponto de uma poça de água se formar à minha volta. Não podia ser verdade... Era só um sonho...
Saí do chalé 10 só com energia para me atirar na minha cama.
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O Ladrão dos Sonhos | Percy Jackson
FanfictionÉ impressionante como sempre acontece alguma coisa importante quando chove. Um encontro com estranho, que sorriu para mim. E isso muda tudo. Ele vem me visitar nos meus sonhos, ele invade a minha noite. O bem mais precioso de Zeus foi roubado. Há...