Capítulo 9

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Exatos quarenta dias após ter transado com Boskovic uma última vez e ter brigado com ela logo após isso, Hande estava cada vez mais próxima de Rose e cada vez mais perto da loucura, por ter que conviver tanto com a matriarca dos Boskovic.

Mas, sempre que as coisas se tornavam insuportável, ela corria para o estúdio infantil onde pequenos braços lhe amparavam.

No começo, a convivência ainda era arisca, mas foi quando a turca se deitou exausta no chão e sentiu dedinhos massageando o seu cabelo, que a relação delas se tornou cada vez melhor.

Hoje era um dia normal para as duas, no qual elas se encontravam para conversar e ouvir música. Mas estava nevando, então Hande Baladin estava sentada diante da janela, com Rose em sua frente, olhando as ruas agitadas de Nova York.

Fazia frio. O céu estava fechado havia uma semana e a chuva batia suavemente na vidraça. As árvores estavam desfolhadas e os galhos ásperos, curvados ao vento como dedos artríticos.

Hande encostou a mão na janela, que refletia o brilho das luzes das árvores, sentindo o vidro frio em sua pele.

- Estou ficando com frio...- sussurrou Rose.

- Venha até mim. – Hande a chamou, a pegando no colo e a cobrindo com o seu casaco gigante. – Assim está melhor?

- Muito! – se aconchegou no colo da turca. – Olhe os flocos de neve, Handem. Eles estão perfeitos!

A cena do lado de fora da janela estava desfocada. Perdida em pensamentos, Hande aos poucos notou o som surdo de um galho batendo na parede. A batida era persistente e firme, e um instante depois ela percebeu que não era um galho. Alguém estava batendo à porta.

- Eu vou atender. – Hande tirou o casaco e deixou com a menina, para que ela não sentisse tanto frio. À porta, parou para passar as mãos pelos cabelos, numa tentativa de se recompor.

Talvez fosse Verna querendo saber aonde ela estava, porém, ao abrir, ficou surpresa por ver uma jovem com uma grande caixa embrulhada nas mãos.

– Sra. Baladin?

– Sim.

A moça deu um passo à frente, hesitante.

– Vim lhe entregar isto. Me disseram que era importante.

– Quem disse?

– O rapaz que entregou na portaria. – respondeu. – Ele quis ter certeza de que a senhora receberia esta noite.

– Eu o conheço?

– Não sei. Mas ele insistiu muito. É um presente de outra pessoa.

– De quem?

– O moço disse que você entenderia quando abrisse a caixa. Mas não a balance e mantenha este lado para cima.

Antes que Hande pudesse impedi-la, a jovem pôs a caixa nos braços dela e se virou para ir embora.

– Espere – disse ela. – Não entendo...

A jovem olhou por cima do ombro e disse:

– Feliz Natal!

Hande ficou parada à porta, observando-ela desaparecer. Ao voltar para dentro, pôs a caixa no chão em frente à janela e se ajoelhou ao lado dela.

- Você ganhou um presente? – a garotinha foi até ela. – Posso saber de quem?

Uma rápida olhada confirmou que não havia nenhum cartão ou qualquer outra indicação de quem a enviara. Ela desfez o laço, levantou a tampa e se viu olhando, sem palavras, para o presente.

Ele era pequeno e peludo, pesava menos de um quilo e estava sentada num canto da caixa.

- É um gatinho! – Rose exclamou, animada.

Era e era o gatinho mais feio que ela já vira. Tinha uma cabeça grande, desproporcional ao resto do corpo. Miando, ele a olhou com olhos remelentos.

Alguém resolveu me dar um filhote de gato, pensou Hande. E um filhote feio.

Preso dentro da caixa havia um envelope. Ao estender a mão para pegá-lo, ela reconheceu a letra e se deteve.

- É da mamãe? – indagou Rose, admirada. – Ela comprou um gato para você?

- Bem, parece que sim. – respondeu, ainda surpresa, não entendendo o posicionamento da morena. Havia tempos que não se falavam e não tinha o menor sinal de interação entre elas, então por que lhe comprar um presente?

- Mas ela nem está em Nova York...- a menina pontuou pensativa.

E de fato não estava. A morena havia viajado para Europa três semanas atrás para resolver algumas questões familiares, mas a turca queria saber logo do que se tratava a carta.

Hande segurou o envelope na sua frente, lendo repetidamente seu nome. Então, com as mãos trêmulas, tirou a carta de dentro dele. Seu olhar se fixou nas primeiras palavras:

Handem,

Era assim que Tijana a chamava, apelido que Rose também a chamava, mesmo sem ter noção de que a mãe fazia o mesmo. Obrigou-se a respirar fundo e recomeçou a ler:

Querida Handem, sei que você está lendo essa carta escondida em algum lugar da empresa. Com sorte, eu chutaria a sala de descanso. E com mais sorte ainda, com a minha filha, já que agora vocês duas são como unha e carne.

Como pode ver, adotei uma gata para você. Sei que você adora esse tipo de animal e achei a causa um tanto quanto comovente: ela é da raça Maine Coon e precisa fazer um tratamento muito caro, por isso ela iria ser sacrificada. Eu fiz uma doação para a ong em que ela estava e me comprometi em pagar todo o tratamento, mas sei que você é a pessoa mais apropriada a dar amor e carinho para ela.

É claro que você não é obrigada a ficar com ela se não quiser. O senhorzinho disse que a aceitará de volta, sem problemas. (O número do telefone dele deve estar na caixa.)

Espero que você esteja bem, Baladin. E que possamos voltar a conversar algum dia.

Um feliz natal,

Tijana.

Com lágrimas nos olhos, Hande estendeu o braço para dentro da caixa. O filhote se aconchegou em sua mão. Ela a ergueu e a levou até perto de seu rosto. A gata era pequena e dava para sentir suas costelas enquanto ela tremia.

- Então é uma menina? – Rose quebrou o silêncio.

- É. – sussurrou.

- Ela é um pouco desprovida de beleza, não é?

A modelo não segurou a vontade de rir e gargalhou alto.

- Rose, não seja tão sincera. – a repreendeu.

Mas a gata era feia mesmo, pensou. E ficaria do tamanho de um cachorro grande. O que ela faria com um gato daqueles?

O filhote, uma fêmea, começou a miar, um lamento agudo que aumentava e diminuía como o eco do apito de um trem ao longe.

– Shh... você vai ficar bem – sussurrou ela. – Não vou machucá-la...

Hande continuou a falar baixinho com o filhote, deixando que ele se acostumasse com ela e ainda assimilando o que Boskovic fizera. A gatinha continuou a miar, quase como se acompanhando a música ao fundo, e Hande acariciou o pescoço dela.

– Está cantando para mim? – perguntou, sorrindo pela primeira vez. – É o que parece, sabe?

Por um momento, a gata parou de miar e olhou para ela, sustentando seu olhar. Então começou a miar de novo, embora desta vez não parecesse tão assustada.

– Taylor – sussurrou ela. – Acho que vou chamá-la de Taylor.

- Isso é tão óbvio quanto parece ser. – revirou os olhos.

- Ela vai ser uma grande diva! – defendeu seu novo animalzinho. – Tome, pegue-a.

Rose arregalou os olhos azuis.

- Vamos, querida. Ela não vai morder você. – a turca a tranquilizou.

- Hande, você conhece ela há cinco minutos. Como pode ter certeza?

- Apenas segure-a. – colocou a gatinha no colo da menina. – Não a deixe cair.

- Não vou. – assegurou, começando a alisar os pelos do bichano.

- Eu vou precisar ir até o pet shopping para comprar as coisas para ela. – pontuou Hande. – Você bem que poderia ir comigo.

- Sério? – indagou animada. – Eu não sei se a vovó deixaria...

- Deixaria o quê exatamente? – Verna a interrompeu, adentrando na sala. – Oh, que animalzinho peculiar.

As duas seguraram a vontade de rir.

- Você quer dizer que é feio, vovó.  – debochou Rose.

- Rose! – Hande a repreendeu. – Não diga isso da pobrezinha, ela tem sentimentos!

- Desculpa, Handem. – a garota pediu e a avó arqueou a sobrancelha.

Estava cada vez mais comum as mudanças de comportamento da garota Boskovic, desde que ela passou a conviver com Hande e Verna era a pessoa que mais notava isso, além da própria mãe da garota, que lidava com pouca ou quase nenhuma rebeldia.

- Tudo bem, solzinho. Não precisa pedir desculpas. – Hande a tranquilizou. – Ela é esquisitinha mesmo.

A fala da modelo tirou uma risada aliviada da menina.

- Bom, está tudo muito bom, mas o que esse gato faz aqui? – indagou Verna. 

Hande engoliu em seco e ficou em silêncio.

- A mamãe deu de presente para a Hande. – Rose ajudou a amiga.

- Tijana presenteou você? – perguntou surpresa.

- Bem, eu gosto bastante de gatos e ela resolveu me dar uma de presente. – explicou. – Mas eu já vou levá-la pra minha casa.

Verna nada disse, apenas ficou encarando a jovem profundamente.  “Quem é essa garota e que mágica ela fez com as minhas meninas”, se perguntou.

Primeiro, ela havia conseguido mudar Rose quase que completamente. Agora, Tijana havia lhe presenteado, sem falar do desespero em que a filha ficou quando soube da possível saída de Hande dos estúdios. Será que seria Hande a luz no fim do túnel?

- Vovó? – Rose a chamou. – Você estava com cara de paisagem.

- Oh, sim. – a morena saiu do transi. – Eu estava apenas pensando. 

- Hande quer comprar os pertences da Taylor...- a menina começou a dizer.

- Quem é Taylor? – questionou confusa.

- A gatinha, vovó. – Rose segurou a vontade de revirar os olhos. – Eu posso ir com ela?

- Só se a senhora achar pertinente. – interviu Hande.

- Claro que é pertinente, Handem. – a menina se defendeu. – Eu preciso ir para pagar por tudo o que a gatinha precisar.

- O-o quê? – perguntou surpresa.

- Eu tenho um cartão ilimitado. – deu de ombros. – E a mamãe disse que ia arcar com todos os custos, não disse?

- Nem pensar! – protestou Hande. – Eu não quero o seu dinheiro.

- Tecnicamente é da minha mãe. – rebateu.

- Tecnicamente eu não quero o dinheiro da sua mãe. – assegurou, chamando a atenção de Verna mais uma vez.

- E a minha companhia? – Rose perguntou, fazendo beicinho.

- Eu posso tolerar você. – Hande deu de ombros. – Mas só se a sua avó deixar.

- Vovó? – chamou a morena. – Por favor, por favor, por favor!

- Agora você tem educação? – debochou da neta, a abraçando de lado.

- Ela está aprendendo com a melhor. – respondeu Hande.

- Eu tenho passado tempo demais com essa chata. – Rose revirou os olhos. – Por favor, demita ela.

- Eu acho que a sua mãe colocaria você e eu para fora desta empresa, caso eu fizesse isso. – sorriu e a turca sentiu as bochechas arderem.

- Vamos evitar esse transtorno. – disse Rose. – Então, eu posso ir?

- Desde que três seguranças possam ir com vocês. – respondeu a neta.

- Ah não, vovó. – reclamou. – Assim não dá!

Hande a encarou, sorrindo levemente.

- E se fosse apenas dois? – a menina sugeriu.

“Antes ela nem iria”, pensou Verna. Mas bastou olhar para Hande, que a neta mudou de ideia.

- Tudo bem. – assentiu.

A garota se jogou nos braços dela e a beijou no rosto, coisa que há anos não acontecia.

- Você é a melhor avó do mundo! – a beijou novamente. – Handem, eu poço levar ela no colo?

- Pode sim, solzinho. – respondeu, pegando sua bolsa. – Nos falamos quando for a hora de devolver a pestinha, senhora?

- Sim, querida. – assentiu Verna. – Bom passeio.

- Obrigada. – agradeceu e seguiu a garota corredor a fora.

A morena deu as coordenadas paras os seguranças e pediu para que as levassem num carro blindado, já vez que era de praxe na família Boskovic.

Sorrindo, Verna deixou a sala em que estava, sentindo que a vida de sua filha e netas estava prestes a mudar. E a mudar para melhor.








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