Narrador ON
Tijana olhou desacreditada para a modelo, não entendendo quando ela simplesmente deu a volta no corredor e voltou para onde elas estavam anteriormente. A morena a seguiu, esquecendo temporariamente que estava chateada.
- Você não vai fazer nada? – perguntou observando a mulher esparramada no sofá que havia próximo aos livros de literatura estrangeira.
Hande estreitou os olhos para a morena, mas resolveu ignorar sua presença. Então ela se direcionou para os livros dos irmãos russos.
- Você está com o seu celular? – perguntou, enquanto pegava um exemplar dos irmãos Karamazov, que estava escrito em turco.
- Não.- respondeu cabisbaixa. – Eu não trago o meu celular, porque geralmente...
- Geralmente você deixa em casa. – completou a fala da outra.
- Como você sabe?
- Deve ser porque o meu também está...- respondeu tirando os sapatos para se acomodar melhor no sofá.
- E você diz isso com essa calma? – perguntou frustrada.
- Ficar estressada e batendo o pé não vai adiantar nada. – deu de ombros.
- Você é...
- Incrivelmente linda, maravilhosa, com o cabelo perfeito, - começou a dizer, fazendo com que a morena bufasse ainda mais irritada. – além de ter olhos incríveis?
- Não se esqueça de dizer que é muito humilde também! – pontuou, dando uma batidinha no pé da mais baixa para que ela tirasse os pés de cima do sofá. – Afaste os seus pés!
- Claro, madame. – debochou uma última vez, sorrindo de lado quando a outra mulher bufou. – Tijana...- sussurrou, pegando um livro branco e estendendo para a outra. – Vamos selar a nossa paz, sim?
- Isso era para ser uma bandeira branca? – perguntou, baixando um pouco a guarda.
- Não vamos nos ater a detalhes, Boskovic! – sorriu para ela e recebeu um aceno mal humorado de volta. – Veja, nos conhecemos, viramos amigas...
- Não somos amigas...- a interrompeu.
- Ainda não! – a interrompeu de volta. – Mas seremos...
- Quem disse que eu quero ser a sua amiga?
- Você não tem muitas amigas, não é verdade? – perguntou e esperou a resposta que não veio. – Tijana?
- Apenas continue lendo o seu...livro? – tentou ler a capa e viu do que se tratava. – Está em turco?
- Sim. – deu de ombros. – Este é um de meus livros favoritos dos irmãos russos.
- Está escrito em turco? – tornou a perguntar. – Você lê em turco?
- Eu sou turca e fui alfabetizada, graças a Alá. – disse. – É a minha língua materna, esqueceu?
Tijana a encarou desacreditada.
- O quê? – questionou. – Eu não tenho um terceiro olho, Boskovic. Você está me olhando esquisito.
- Você fala turco! – pontuou, pela primeira vez, admirada com a outra garota. – Nós nos comunicamos apenas em inglês, que eu acabei esquecendo esse fato sobre você.
- Assim como eu falo inglês e espanhol ...- disse simplesmente. – Você aparenta saber falar as mesmas línguas.
- Algumas a mais, talvez. – pontuou e dessa vez a jovem quem a olhou admirada. – Agora você é quem está me olhando estranho.
- Mandarim? – perguntou admirada.
- Sim. Gosto de como a língua funciona..- começou a explicar. – Gosto também da maneira que eles trabalham.
- Devido a mão de obra barata? – pontuou e a morena arqueou um sobrancelha. – Você sabe o que dizem, não sou eu quem está dizendo.
- Claro que não é você. – deu de ombros. – Nós precisamos da matéria prima deles, apenas isso. Eu não tenho controle sobre a forma como eles trabalham, Hande.
- Entendo perfeitamente...- desviou os olhos do livro, para encarar os olhos da outra mulher. – Sua família é multimilionária mesmo?
- Você sabe que sim. – disse. – Eles possuem uma diversidade de propriedades.
- Propriedades? No plural? – perguntou surpresa.
- No plural. – suspirou profundamente. – São prioridades espalhadas por toda a América e Europa.
- Ok, você tem certeza de que não foi paixão a primeira vista? – tentou descontrair, e recebeu um pequeno sorriso da outra mulher. – Tem certeza de que não quer se casar comigo e nem nada?
Tijana segurou a vontade de sorrir profundamente. Ela não lembrava a última vez que tinha segurado essa vontade tanto com uma pessoa. Ultimamente, tudo estava tão conturbado em sua vida, que ela desconhecia essa sensação.
- Tudo isso por causa do meu dinheiro?
- A sua grana e o fato de você ser incrivelmente lin...- tentou dizer, mas foi interrompida pela morena.
- Você não perde a oportunidade! – ralhou novamente. – Eu acho que nunca fui tão cortejada em toda minha vida.
- Como não? – brincou. – As pessoas não babam em você o tempo todo? Não varrem o chão antes de você passar pelo mesmo local que os reles mortais já passaram?
- Não! – deu de ombros.
- Não seja por isso! – dramatizou falsamente. – Oh, vossa majestade, eu me ofereço para fazer isso pra senhora. Em dias ímpares, claro.
- Em dias ímpares? – perguntou sem entender.
- Claro! Não seja egoísta, Tijana! – respondeu. – Eu terei de ter dias de folga.
- Mas três dias? Você não quer demais? – pontuou, como se a hipótese fosse real. – iríamos ter uma falência eminente.
- Eu sabia que você trabalhava com mão de obra escrava! – resmungou.
- Eu apenas tenho noção das leis trabalhistas, senhorita. E você não teria direito a...
- Ih, papo chato demais! – a interrompeu. – Vamos mudar de assunto.
- Você já sabe demais acerca da minha vida. – retrucou.
- Prometo que será a última pergunta...- fez a sua melhor cara de cachorro caído da mudança. – Sim?
A morena hesitou por alguns segundos, refletindo.
- O que quer saber, Hande? – resolveu ceder.
- Onde está a sua outra filha?
Boskovic desviou os olhos rapidamente, não conseguindo permanecer encarando aqueles olhos curiosos.
- É complicado...- murmurou, esperando que a mulher não insistisse no assunto.
- Não tem problema, - começou a dizer. – Nós temos a noite toda para você contar.
- Hande...- tentou fugir. – Eu não sei se devo me expor tanto assim.
- Se eu te contar uma história, você me conta sobre a sua filha? – perguntou esperançosa.
- Hande...- tentou novamente.
- Por favor? – tornou a perguntar. – Só estou tentando fazer o tempo passar mais rápido.
- Você só está sendo curiosa! – disse, dando de ombros quando a modelo fingiu indignação.
- Bom, isso também...- começou a dizer. – Mas esse fato não anula o fato de eu estar querendo nos ajudar.
- Sei...- falou desconfiada. – Você é muito solícita, senhorita.
- É o que dizem. – se gabou. – Então, é pegar ou largar.
- Tudo bem...- suspirou derrotada. – Comece, então.
A mais nova respirou fundo e se aconchegou melhor no sofá.
- Existia uma garotinha...- começou, tentando formular a história. – Ela vivia com seus pais e, quando ela tinha doze anos, um homem mau a levou...
- É uma história triste? – a interrompeu.
- Sempre é...- sussurrou baixinho. – O homem mau a arrastou para o carro dele, tapando a boca dela com um pedaço de mau trapo. – sussurrou novamente. – A menina acabou desmaiando quando ele a jogou no porta malas.
- Hande...- tentou interromper, ao notar o rumo daquela conversa.
- Ela só acordou quando estava no sótão escuro, - ignorou a interrompida da outra mulher. – e sentiu o maior medo de sua vida, porque ela não sabia aonde estava e se lembrava de ter sido levada pelo homem mau. No dia seguinte, ele apareceu pra amarrar suas mãos e lhe amordaçar para que ela não pudesse fazer algum barulho.
Hande tornou a respirar fundo, ainda sem encarar os olhos da mulher que estava ao seu lado.
- A garotinha passou seis meses nessa situação, - tornou a explicar. – amarrada, passando frio e fome e tendo o seu corpo violado...
- Hande...- ela se encolheu com a informação. – Você não precisa continuar.
- Pelo menos tem um final feliz, - tentou descontrair. – Ela foi salva por uma denúncia anônima de um vizinho que a ouviu gritar, quando a dor ficou insuportável.
- Eu sinto muito...- sussurrou, se aproximando mais dela e segurando em sua mão em seguida. – Oh, Hande, eu sinto muito!
- Não sinta, - apertou a mão dela entre seus dedos. – Já passou, assim como tudo passa.
- Nenhuma criança deveria passar por isso! – bufou frustrada. – Ele devia pagar caro por ter arruinado a sua vida!
Hande soltou a mão da outra mulher aos poucos e a assistiu a encarar com arrependimento.
- Me desculpa, eu não devia ser tão insensível... – começou a falar, mas logo foi interrompida.
- Tudo bem, você disse que ia acontecer mais vezes, lembra? – pontuou calmamente. – Se sente a vontade para falar sobre a sua filha?
A morena suspirou pesadamente.
- Eu não sou uma boa filha, muito menos uma boa mãe, Hande...- disse. – Meus pais sempre me mantinham longe do país e eu só voltei a ter contato com eles depois de adulta.
- O que acontecia para você se mudar pra fora do país? – perguntou curiosa.
- Não conseguiram achar uma escola que me segurasse. – omitiu as razões que a fizeram mudar de escola.
- Apenas por isso?
A morena ponderou.
- Bem, talvez eu tenha feito algumas coisa que não agradaram tanto as diretoras das escolas em que eu estudei. – disse.
- Falando assim, até parece que você já matou alguém. – comentou e assistiu a mulher lhe encarar profundamente. – Espera, você já matou alguém?
A morena assentiu.
- Céus! Essa é a hora que eu começo a correr e gritar por socorro? – perguntou preocupada.
- Eu estou brincando, garota. – a tranquilizou. – Eu apenas beijava mais bocas do que eu conseguia contar.
A turca ainda lhe olhou desconfiada.
- Enfim, eu fui estudar na Suíça e lá as coisas eram mais rigorosas. – explicou. – O típico problema de garota rica, não é? Você deve estar achando uma bobagem...
- Eu não acharia bobagem de forma alguma. – disse. – E não invalidaria uma situação como essa, só porque tu foi uma garota rica.
- Mas a sua história foi realmente dolorosa...
- Nós não estamos concorrendo a quem tem a desgraça pior, Boskovic. – a tranquilizou. – Não é uma competição, porque cada dor é única.
Tijana a encarou, admirada.
- Você é tão sábia para a idade que tem. – sussurrou.
- Você é apenas um ano mais velha do que eu, balzaquiana. – rebateu e conseguiu arrancar um sorriso dela. – Melhor assim.
- O quê? – perguntou perdida.
- Não vou dizer. – levantou as mãos, em sinal de rendimento. – Você fica ainda mais bonita sorrindo.
Boskovic arregalou os olhos com a informação.
- Você se olha no espelho? – indagou.
- Diversas vezes. – admitiu. – Você parece não estar acostumada a receber elogios, não é?
- É complicado. – tentou desconversar. – Nunca foi sem interesse.
- Por Alá! Com que tipo de gente você andava? – rebateu Hande.
- Do tipo que me usava para conseguir o que quisesse. – respondeu amargamente. – Talvez isso reflita no que eu sou hoje.
- Então você precisa rever as suas amizades. – pontuou. – E possíveis namoros. Não é possível que você tenha tanto azar assim em se envolver só com quem quer o seu dinheiro. – refletiu. – Se bem que você é tão desconfiada, que eu receio que esse azar seja grande mesmo.
- E é. – disse Tijana. – A mãe da minha filha me traiu com um cara que eu detestava e ainda teve uma filha com ele.
Baladin arregalou os olhos.
- Espera, de qual filha estamos falando? – indagou.
- Bella. – respondeu. – A mãe dela fez isso comigo.
- Que cretina! – exclamou. – Então a sua filha foi...
- Fruto de uma traição. – a interrompeu. – Mas eu só descobri, quando a Bella já tinha dois anos.
- O quê? Ela não te contou?
- Não. Eu flagrei eles discutindo e ouvi toda a conversa. – respondeu.
- Veja pelo lado bom. – disse Hande. – Você poderia ter pego eles na sua cama.
A morena gargalhou.
- Obrigada, Hande. Vendo por esse lado, agora eu estou bem melhor. – pontuou.
- Não há de quê, querida. Você sabe que quando precisar...
- Você será a primeira pessoa que eu vou procurar. - sorriu de novo. – Poderia ser pior mesmo, mas o chifre foi o de menos.
- Foi? – indagou surpresa.
- A Bella já era a minha filha, antes de eu descobrir toda essa podridão. – explicou. – Não é sangue do meu sangue, mas pouco importa.
- Até porque não precisa ter o mesmo sangue pra ser mãe de alguém, não é?
- Não mesmo. – concordou. – Foi por isso que eu fiz questão de ter a Bella comigo. Mas não foi como se os genitores se importassem.
- Eles não quiseram a guarda?
- O meu pai armou pra eles. – confessou. – Disse que daria dinheiro, em troca da minha filha.
- Que tipo de mãe venderia a própria filha? – perguntou, revoltada.
- O tipo que não se importa com os meios de conseguir dinheiro. – rebateu. – Os advogados do meu pai cuidaram para que eles não se aproximassem da minha filha e de mim.
- Como?
- Gravação das conversas que eles tinham. – explicou. – Papai pagou uma quantia para os dois, mas fez a chantagem de que chamaria a polícia, caso eles entrassem em contato para pedir mais dinheiro.
A mais jovem ponderou, antes de seguir para a próxima pergunta.
- Chantagem também não é crime?
- Dois pesos e duas medidas, não é mesmo? – rebateu.
Hande refletiu sobre a resposta. Ela queria fazer a pergunta que estava martelando sua cabeça e ela meio que já sabia a resposta.
- Onde ela está, nesse momento?
Boskovic desviou os olhos da garota, envergonha.
- Suíça.
Hande sentiu seu coração afundar com a resposta, mas entendendo que a outra mulher apenas estava fazendo o que fizeram com ela.
- Eu sou patética...- sussurrou Tijana.
- Não, Tijana. Você não se resume as suas ações. – a repreendeu. – Mas talvez você possa rever essa parte.
- Trazê-la para os Estados Unidos?
- Sim. – respondeu. – Você está espelhando as ações dos seus pais mantendo ela longe.
- Eu sei...
- O que mais você queria quando estava na Suiça? – perguntou Hande, depois de escolher bem as palavras.
- Voltar para casa.
- E...- a incentivou.
- Que os meus pais me descem atenção. – finalizou.
A jovem sorriu com a constatação da mais velha.
- Eu acho que você já sabe o que fazer. – deu de ombros e a sérvia assentiu.
Tijana refletiu sobre as palavras da outra mulher. Ela sabia que, mais cedo ou mais tarde, teria que trazer a filha, ou a menina viraria uma mini versão sua: totalmente revoltada e que odiava os pais. Então, ela daria um jeito.
- Tica...- Hande tentou falar, mas foi interrompida.
- Ainda quer ser a minha amiga? – debochou.
- Por que eu não iria querer ser? – perguntou.
- Você faz perguntas demais! – rebateu.
- E eu não vou parar até entender – disse. – Por que eu não iria querer ser a sua amiga?
- Porque eu sou uma pessoa ruim! – rebateu. – isso não é motivo suficiente? Fico apenas com uma filha, enquanto a outra é completamente negligenciada...
Um silêncio pairou entre as duas, até a mais baixa resolver quebrar.
- Para mim? Não. – deu de ombros. – Você só fez o que fez para proteger quem você ama.
- Hande, eu não sou uma boa pessoa. – foi mais incisiva. – Não sirvo para ter amigas.
- Como não? Você foi capaz de passar por cima do seu orgulho pra ficar com a sua filha. – pontuou. – Ao invés de descartar a coitadinha...
- Eu jamais faria isso! – ralhou.
- Aí está a prova de que você é uma pessoa boa, Boskovic. – explicou. – Pessoas ruins, só se importam consigo mesmo.
- Hande...
- Sem chance! – a interrompeu. – Apenas lide com o fato de sermos amigas.
Boskovic revirou os olhos.
- Você é tão cativante. – debochou.
- Faz parte do meu charme. – deu de ombros, se aconchegando melhor naquele enorme sofá. – E se a gente dormisse? Eu tenho que estar amanhã cedo nos estúdios...- lamentou.
- Por quê? – perguntou, interessada.
- O trabalho escravo ainda não foi abolido naquela empresa. – rebateu. – Eu preciso aprender algumas técnicas com o fotógrafo que a sua mãe indicou, e também preciso pesquisar sobre alguns assuntos que ele recomendou.
- Ele pediu pra você ir tão cedo?
- Não. Eu quem pedi a ele. – rebateu. – Preciso aprender.
- Você tem razão. – se acomodou melhor no sofá. – Vamos dormir então.
Hande a encarou em expectativa, chegando mais perto da morena.
- Tica? – chamou a atenção da outra mulher.
- Hum? – resmungou, fechando os olhos em seguida.
- Obrigada por ter se aberto comigo.
Tijana abriu os olhos e deu de cara com os da outra mulher lhe encarando.
- Obrigada você por ter dividido a sua história comigo. – sussurrou.
Hande assentiu e respirou fundo, sendo capaz de sentir o perfume da outra mulher, já que elas estavam tão próxima.
- Boa noite, Tica. – desejou, fechando os olhos em seguida.
- Boa noite, Hande. – desejou de volta, rezando para que o sono viesse rápido.
E ele estranhamente veio, sem que a mulher mais velha se desse conta. E, pela segunda vez que dormia com a turca, ela conseguiu dormir sem a ajuda de remédios e sem estar exausta.
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The loneliest
Fanfiction[FINALIZADA] Que foi real em nós? Que houve em nós de sonho? De que Nós fomos de que voz O duplo eco risonho Que unidade tivemos? O que foi que perdemos?