Capítulo I: Entre Luz e Sombras

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Eu acredito que todo mundo tem um momento na vida que te transforma para sempre, que te divide em antes e depois. E o meu foi aos 16 anos.

Eu sempre tive uma vida fácil e tranquila, sem muitas escolhas que modificassem significativamente a minha vida. Cresci em uma bela casa de campo com um grande quintal, estudei em boas escolas, tive um grande amor, vivi dias incríveis e mágicos, tive amigos, tive um pai incrível que me amou incondicionalmente e infinitamente acima de tudo, e tive uma mãe não muito presente, mas que fez o seu melhor, e eu entendo isso. Não éramos muito próximas e não fazíamos muitas coisas juntas. Na verdade, quase sempre brigávamos por algo bobo como passar muito tempo com meu pai ou receber toda a sua atenção, mas qual adolescente nunca se desentendeu com a mãe?

Minha mãe é uma grande mulher, uma polímata excepcional, uma microbiologista renomada, o que demandava muito do seu tempo em pesquisas, iniciações científicas, o laboratório era sua casa. Na verdade, ela passava mais tempo lá do que em nossa casa. Creio que isso acabou nos afastando um pouco. Lembro-me que quando eu era pequena, mais ou menos com uns 6 anos de idade, meu pai me comprou uma linda boneca Barbie cientista que eu prontamente dei o nome da minha mãe para ela, Elisa. Eu fiquei tão animada! A boneca era perfeita, vinha com acessórios como um béquer, um microscópio e um lindo jaleco branco. Assim que meu pai me deu o pacote embrulhado em papel azul metálico, eu abri desesperadamente, pulando de tanta excitação. Assim que peguei a boneca em minhas mãos, corri para o escritório da minha mãe para mostrar que a Barbie, que obviamente na minha cabeça tinha sido feita em homenagem a minha mãe. Desci as escadas correndo, segurando no corrimão. Minha mãe estava ali no escritório, perdida em seus papéis a manhã toda. Eu mal tinha a visto. Entrei em sua sala, e lá estava ela, linda, sentada em sua grande cadeira, lendo algo em sua mesa. Seu lindo cabelo castanho encaracolado ganhava um tom avermelhado com a luz do sol que entrava. Minha mãe era minha musa, a mulher mais linda que eu já tinha visto na vida. Seus olhos verdes e suas sardas davam um ar angelical. Herdei esses olhos, mas não chego a 10% de sua beleza. Seus grandes óculos a deixavam tão inteligente. Eu sempre pedia para usá-los, mas ela nunca deixava. Entrei correndo em sua sala, subindo em seu colo, entusiasmada.

- Mamãe! Mamãe! Olha, ela é igual a você, dei seu nome para ela. Ela é cientista como você, não é legal? - Mostrei a boneca recém-tirada da caixa, erguendo na altura de seu rosto.

- Muito legal, filha. Mas a mamãe está ocupada agora. Por que não vai brincar lá fora ou desenhar alguma coisa? - Ela praticamente me ignorou, me colocando no chão ao seu lado, e voltou sua visão para o computador em sua mesa.

- Mas eu quero brincar com você, mamãe. Podemos criar poções e brincar de laboratório. - Disse, mostrando o pequeno béquer de acessório da boneca.

- Eu não faço poções, filha. Por que não vai brincar com seu pai? Ele adora te dar esses brinquedos, tenho certeza que ele não está ocupado.

- Mas eu queria...

- Já disse que não. Preciso trabalhar. - Ela disse subitamente, me interrompendo, e fez sinal para que eu saísse da sala e a deixasse em paz com seus pensamentos.

Minha mãe quase nunca tinha tempo para ficar comigo. Vez ou outra, quando meu pai estava conosco, ela inventava um dia de brincadeiras na beira do lago ou um piquenique no jardim, mas fora isso, quando éramos apenas eu e ela, na verdade era apenas eu. Subi as escadas e voltei de cabeça baixa, com a boneca arrastando no chão, até a sala de estar. Meu pai estava sentado em sua poltrona, virado para a janela que dava uma ampla visão para nosso quintal de grama verde, com um lindo lago onde costumávamos pescar no verão. Ele estava lendo seu livro de neurociência. Dias antes de grandes cirurgias, ele lia e relia esse livro. Era uma forma que ele encontrava de se preparar para as horas em pé, cutucando o cérebro de alguém em uma sala de cirurgia gelada. Sentei de frente para ele e fiquei olhando para o lago. Somente estar ao lado do meu pai já era reconfortante. Algo nele me passava amor e tranquilidade, talvez o seu cheiro ou o simples fato dele ser o melhor pai do mundo.

- O que foi, Moranguinho? Alguma formiga picou o seu pé? - Ele disse sorrindo, puxando o dedão do meu pé e fazendo cócegas na minha barriga. Automaticamente, desfiz minha cara de emburrada e comecei a gargalhar. Meu pai tinha o dom de me fazer sorrir.

- A mamãe não quer brincar comigo - Disse, fazendo biquinho e mostrando a boneca, que a essa altura já estava descabelada devido ao trajeto que veio sendo arrastada.

- Minha Moranguinho, a mamãe está muito ocupada com o trabalho. Não se preocupe com isso - Ele sorriu gentilmente, me carregando e me colocando em seu colo.

- Você também trabalha e sempre está comigo.

- Pois então eu brinco com você, ou já não sou mais suficiente? Do que você quer brincar?

- Hmm... Quero brincar de jardineira.

- Jardineira é? E se outra formiga te picar? - E novamente as cócegas retornaram, me derrubando no sofá e quase me matando de tanto rir.

Meu pai, ao contrário da minha mãe, era extremamente presente. Mesmo com o trabalho de neurocirurgião, ele sempre tirava um tempo no trabalho para me ligar durante o dia e perguntar como eu estava e o que eu tinha feito até agora. Ele acordava cedo para me fazer panquecas no café da manhã e me levar até a escola. Ele me ajudava em todos os deveres de casa e sempre fingia que eu era mais esperta, mesmo sendo uma lição boba de 2+2. Todas as noites, ele lia histórias para eu dormir, me enrolava no cobertor como se fosse um casulo. Tínhamos um walkie-talkie para que eu pudesse chamá-lo durante a noite caso não conseguisse dormir. Meu pai era o melhor pai do mundo. Ele era médico durante o dia e um super-herói durante a noite, e eu era sua maior fã.

Ele era alto, forte e bonito, com cabelos ruivos na altura dos ombros e uma bela barba sempre bem aparada. Era muito inteligente e muito engraçado. Tinha o nome do Príncipe da Ariel, Eric, e eu amava lembrar disso. Meu pai, entre todas as coisas que ele era para mim, também era meu Príncipe Encantado, enquanto às vezes minha mãe era a bruxa má.

Eu sou uma verdadeira cópia do meu pai, com cabelos ruivos, alta e esguia, e tenho a mesma marca de nascença na nuca. Praticamente tenho a mesma personalidade que ele, tirando meus olhos e sardas como a minha mãe. Eu sou um exato clone do meu pai, e essa semelhança incomodava um pouco a minha mãe. Ela sempre fazia questão de lembrar que eu era igualzinha ao meu pai, mas eu não me incomodava nem um pouquinho com isso.

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