O RELOJOEIRO

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Há muitas formas de poder, moldadas em diferentes materiais e encaixadas umas nas outras como um sistema intrincado de engrenagens, maioria das vezes funcionando discretamente, o que só colabora na eficácia de sua influência sobre sentimentos e ações da massa dos menos atentos. No momento, porém, muitas coisas estavam reveladas, expostas, o sentido de tudo desnudo e constantemente reforçado pelo relojoeiro.

– Deve estar gostando – disse ele, mostrando sua limpa e organizada oficina de paredes repletas de relógios cuco de diferentes estilos e tamanhos, mesas ocupadas com trabalhos inacabados e peças expostas nas prateleiras dos armários.

– Estou, assim como estava gostando na última vez que me perguntou, antes de entrarmos. – Eveline cruzou os braços no meio do ambiente. Apesar da resposta ríspida, estava falando, portanto sendo uma companhia melhor do que havia sido durante todo o trajeto do cruzeiro à fábrica de relógios Schoenberg.

– Só estou dizendo que deve se sentir em casa diante de todo esse metal.

– Há muita coisa dourada, mas não é ouro de verdade. Aliás, nem sei por que me trouxe aqui.

–Calma, Gutierrez. Você já foi mais dócil. No começo, parecia nos compreender, fazendo tudo pela sobrevivência.

– Tudo o que fiz foi pela sobrevivência minha e de meu pai. Vocês são multimilionários, vários membros da Efígie estão envolvidos na política, isso só pelo que sei. Por que me obrigar a roubar ouro se são tão ricos?

– Dinheiro, armas, cargos importantes... De fato, muito úteis, mas nada tão empolgante quanto o que você e seu amigo têm. – Maciel passou por Eveline, andando casualmente pela oficina. – Sabe, uma coisa você precisa aprender sobre sobrevivência: o que não evolui, regride. O poder também é assim. Sempre faminto, sempre precisando de mais. O poder vive de sua própria expansão.

– Só isso? Poder pelo poder? Sem nenhum propósito maior?

Sem se importar com o olhar vigilante de Eveline, que o seguia pela oficina, o relojoeiro parou e contemplou o balançar dos pêndulos acenando zombeteiramente dos aparelhos nas paredes.

– O mundo é um relógio de peças numerosas e complexas, e, como tal, precisa de vez em quando da intervenção de um profissional com ferramentas e conhecimento para garantir seu pleno funcionamento. Magia seria a ferramenta perfeita. Imagine um relógio cujas peças não emperrem, não enferrujam, não sofram mais das vicissitudes da natureza. Quebrar as leis da física é o verdadeiro poder.

– Eu imagino. Imagino, inclusive, que a Efígie seja esse relojoeiro apto a consertar o mundo, não é isso que está querendo dizer?

Maciel deu de ombros.

– O estudo do Império Romano e do oculto nos deu bons conhecimentos, e estamos sempre em busca de ferramentas cada vez melhores. Somos um batalhão de relojoeiros qualificados.

– Sob o comando de quem? Você? Porque, pelo que lembro, o último chefão está morto, transpassado por moedas em chamas.

– Jeremias Wernek foi um homem de ambição e astúcia. Teve a ideia de conjurar o leão para manter a custódia do bruxo, mas acabou perecendo, em parte por não dar ouvidos a bons conselhos. Meus conselhos. Mas está em tempo de pôr tudo nos trilhos. Só preciso recapturar a moeda e o bruxo para ser aceito pelo conselho de sábios como novo cônsul. E você vai me ajudar.

– Eu?

– Não foi apenas Wernek que pensou em um cão de guarda. Também preparei uma fera de estimação e acho que a minha dará mais certo. – Animadamente, Maciel abriu espaço em uma mesa próxima, afastando para o canto engrenagens e carcaças de relógios pela metade. Em seguida, contornou a mesa, empurrou um armário de lado e o mesmo se moveu com certa facilidade, revelando um cofre.

Ele apertou a combinação sem que Eveline conseguisse ver e abriu a porta, trazendo para fora e pondo sobre o lugar preparado um volume de mais ou menos sessenta centímetros de altura. Puxou o manto e deixou o brilho se revelar por primeiro.

Depois da surpresa inicial com o lampejo dourado, Eveline divisou a figura de uma ave, mais especificamente uma águia, de olhar altivo, bicos e garras afiadas e asas polidas, todo o corpo confeccionado a ouro puro, com peças meticulosamente unidas por parafusos, juntas e articulações sofisticadas.

– Lindo brinquedo – disse ela.

– Obrigado. Estive trabalhando nele nos últimos dias e terminei recentemente. Quero dizer, quase terminei. Só falta um toque final. O seu toque – disse Maciel, e continuou quando a moça olhou para ele: – Deve se lembrar do sucesso do relógio. De como transformamos juntos aquele simples mecanismo em uma primorosa bússola que nos permitiu encontrar o mago. Vamos subir o nível dessa vez, subir para o alto em um voo esplêndido.

– É uma arma?

– É muitas coisas. Mas, se quiser colocar neste termo, sim, é uma arma. Uma arma de assalto. Enfeitiçada por você, poderá ir atrás do mago e trazê-lo para nós junto com a moeda, como uma boa ave de rapina. Não pode dizer que não se identifica.

– Realmente, não posso dizer que não é a minha cara. – Eveline levantou os braços, em uma menção de pegar o mecanismo, e parou no meio do processo, concentrando-se e fazendo a resplandecência do metal precioso aumentar. – Mas não teme por isso? Mesmo as feras de estimação podem ser imprevisíveis – disse ela. As asas do autômato abriram e começaram a bater, provocando uma ventania que parecia querer mover peças e ponteiros ao redor.

– Confio em você. – Maciel saiu de trás da mesa, falando por cima do barulho. – Afinal, você confia a nós a segurança de seu pai. Não quer que algo aconteça com ele, não é? – Ele se encaminhou à porta e a abriu. – A escolha é toda sua.

Eveline deu dois passos para o lado, direcionando os braços para a saída.

– Por que perder tempo?

A ventania não apenas revoou com mais intensidade os cabelos lisos e castanhos dos presentes, como também conseguiu levantar a máquina dourada no ar, permitindo-a costurar o espaço entre eles, assustar os seguranças depois da porta e desbravar os corredores até chegar à fábrica, no piso superior.

Pouco se importou com o maquinário e se manteve próximo ao teto, de modo que não foi esforço encontrar uma claraboia e abraçar a manhã com a envergadura de suas asas artesanalmente confeccionadas, as duas firmes e prontas para desbravar a liberdade celeste.

Primeiramente, planou em círculos, variando um pouco a altura antes de apontar o bico para o leste e voar cortante em linha reta. A direção escolhida não foi aleatória, afinal estava sendo guiada pela moça sentada no banco da limusine, alternando a atenção entre o relógio em mãos e o teto solar pelo qual observava o autômato no alto.

– Em breve chegaremos ao litoral. Acha que ele está na praia? – Maciel estava sentado no banco ao lado. Tinha conseguido capturar o bruxo liberando sonífero naquele mesmo veículo e esperava que o reencontro não estivesse distante.

– Ele vai evitar o leão por enquanto. Deve estar no mar.

– O mar é bem grande.

– Ele não vai se afastar muito, porque ainda precisa jogar a moeda na fonte. Estou captando a energia da moeda com ele e posso afirmar que está se aproximando do ponto do litoral com a menor distância possível da mansão. Posso tentar uma investida quando chegarmos à praia, mas preciso de mais ouro.

– Mais? A águia não basta?

– Ele está mais poderoso e o leão não sai da cola dele. Para lidar com essas duas variáveis, preciso de mais alguns quilos de ouro. A gaiola seria uma boa pedida.

– Entendo. – Maciel apoiou as costas no encosto do banco, desarmando em alguns segundos o fugaz ar de desconfiança. – Será providenciado. Vamos levar a prisão para essa praia para a qual você jura que ele vai. Um passarinho e uma gaiola. Nada mal para receber nosso amigo. Não é bom para ninguém adiar esse encontro, você sabe.

– Estou voando para ele. – Eveline deu uma última olhada no relojoeiro e fechou os dedos ao redor do relógio, o objeto compartilhando da mesma magia que a ave metálica cortando os céus em direção à fronteira entre a terra e o mar.

Derek Campbell contra a EfígieOnde histórias criam vida. Descubra agora