Entrou em casa ignorando o olhar da cunhada que fazia o pimpolho dormir. Desde que se juntaram, há algum tempo, o irmão, a cunhada e mais recentemente o sobrinho dividiam a pequena moradia com Porfírio. Atravessou a pequena sala e cerrou-se em seu quarto.
Entrou e encerrou-se dentro de sua própria desgraça. Trancou a porta do seu pequeno quarto, pendurou um cobertor na janela que dava para a rua e apagou a luz. Observou que pela porta do quarto entrava, pela fresta do assoalho um pequena réstia de vida. Tapou-a com o tapete, lacrando sua alcova. Deitou-se na cama e esperou o tempo passar.
Esperou que a polícia ou alguém lhe batesse à porta de casa para tomar-lhe satisfações dos atos tresloucados que nesta sombria manhã cometera. O tempo escorria vagarosamente. Quando faltavam apenas quinze minutos para as onze horas da manhã, concluiu que ninguém iria lhe procurar. Desinquieto, procurava esquecer do horário, mas não conseguia. Sabia ele que quando o relógio apontasse onze horas da manhã todo o seu sonho estaria definitivamente desfeito. Antes desse horário, sonhava ainda Porfírio ver adentrar pela porta de seu quarto Carminha, entre lágrimas, dizendo que o amava, que deveriam fugir imediatamente de tudo e de todos.
Era a mente de Porfírio que divagava por lugares que ele ainda não houvera conhecer, escrevendo em seu peito um poema épico, cujo drama estava na descoberta do desconhecido, como o poema daquele que partiu para mares nunca dantes navegados. E estes quinze minutos, tal era o espavorimento de Porfírio, afiguravam-se-lhe a quinze horas.
De quando em quando levantava-se, acendia a luz e percebia terem passados um, dois minutos apenas.
Então, quando o relógio alcançou as onze horas, Porfírio ainda aguardou mais alguns minutos, tempo normalmente gasto pela noiva a título de charme, num elegante atraso, como que para deixar atônito por mais alguns instantes o noivo, como que para sentir-se uns minutos a mais o centro de todas as atenções. Vencido este tempo, Porfírio sentiu a vista escurecer. Apercebeu-se quando quebrava o relógio de pulso que estava sobre o criado-mudo ao lado da cama a golpes de abajur, numa fúria indômita. Finda a operação, estavam os dois objetos esfacelados. Apagou então a luz do quarto e deitou-se na cama, sentindo seu mundo fanar-se.
De repente, o susto.
Se a morte é, como dizem os especuladores do além e os espíritos iluminados, um "encontro com a própria consciência", esteve, de fato, morto Porfírio durante o tempo em que esteve metido em sua alcova.
Jamais imaginou passar por semelhante prova!
Como se perdoar de tão profundas vilanias?
Onde buscar forças para se recompor?
Como alcançar o perdão?
Onde estava o tempo?
Em quê se agarrar no espaço?
Vozes enfurecidas lhe aturdiam. Gargalhadas sinistras perseguiam-no. Lágrimas desciam, como que de sangue, pela sua face. Da luz do dia, tão distante, não tinha mais sequer recordação.
Passou ali muito tempo. Em verdade dois dias inteiros e duas noites completas. E durante todo este tempo ninguém o importunou. E Porfírio não sabia se sonhava ou divagava; imaginava-se em diversos lugares, mas todos tão sombrios, tão horríveis!
Sonhou muito, chorou muito e não encontrava mais sentido para a sua vida. Nestes momentos de profunda mágoa, de desespero exacerbado, buscava forças no mais fundo do seu âmago. Queria ouvir a voz de sua mãe então, mas isso ele não tinha ali. Queria sentir a voz maviosa, a mão delicada e macia, o tom sereno de alguém que não mais veria, nem a mãe, nem a amada.
Se uma ele enterrou, a outra enterrara-o. Decidiu ali entregar-se à morte. Morreria ali. Poderia até estar, de fato, morto! Só sairia dali dentro de seu caixão! Quando seu corpo começasse a putrificar e o forte cheiro alertasse a todos, daria apenas um último trabalho, o de o transferirem para um ataúde definitivo. Não sabia Porfírio dizer se passava esses dias dormindo ou acordado; em sonhos ou em devaneios, se vivo ou morto.
O fato é que num determinado momento, acometido de tremendo susto, pulou da cama e correu para a porta do quarto. Sem saber donde nem porque, um medo terrível lhe assaltou, talvez fosse o medo da própria morte, que verdadeiramente se aproximava. Era hora do teatro acabar, mas sua vida, pertinaz, não se acabara.
Descerrou a chave mas não conseguiu abrir a porta. O tapete que colocara para evitar a luz que passava por debaixo dela impediu a porta de se abrir. Abaixou-se, afoito para retirá-lo e só então sentiu o quão combalido estava. Sentiu o ar tépido lhe confundir os sentidos. Num esforço último, retirou o maldito tapete, abriu a porta e a luz que invadiu o ambiente cegou-o Sentiu então as necessidades destes dias escorrer-lhe pelas pernas. Desfaleceu.
Acordou algum tempo depois. Ao assistir a tétrica cena, a cunhada mandou chamar ao marido no trabalho, com urgência. Este banhou o infeliz irmão. Abriram a janela do quarto, deixaram o ar circular. Trocaram os lençóis. Colocaram em Porfírio um pijama limpo. Deitaram-no na cama, agora macia e fresca. Não era mais aquela cama a faca da morte, mas a mão da mãe. Trouxe-lhe a cunhada um mingau de fubá reforçado com ovos cozidos que tratou-lhe na boca. Colocaram um avental no pescoço do convalescente que comeu um pouco e logo enjoou. Cessaram então a alimentação. A cabeça de Porfírio girava. Sem dizer palavra, fechou os olhos e adormeceu, agora serenamente.
Gastou ainda alguns dias para reconquistar a confiança no andar, no comer, no se banhar. Foi aos poucos reaprendendo a cuidar de si, como se agora definitivamente um novo Porfírio nascesse daquilo tudo o que lhe acontecera.
E a lembrança de todas as vergonhas e o arrependimento de tudo o que fizera, aos poucos se amenizou pois que sentia ter feito tudo aquilo em uma outra vida, noutra existência. Mas esta era a marca que teria de carregar durante esta nova existência.
Passado os dias de loucura em que passou escondido de tudo e de todos, encerrado naquele sombrio quarto, o arrependimento lhe pegou. E foi assim, arrependido que reaprendeu a olhar nos olhos dos seus familiares, reconquistando a sua própria casa, depois a calçada, depois a quadra, a praça, a cidade.
Encontrou pelas ruas Graziela, o Dr. Jacy, viu Euzébio e Carminha.
Foi suficientemente forte todas as vezes que vislumbrou aquelas personagens de sua vida passada. Fez Porfírio que não os conhecia e, de fato, não os reconhecia. É que este novo Porfírio não conhecia aquelas pessoas, todas tão estranhas como estranhos eram os seus dias agora: arejados e calmos, apesar de vazios.
Tornou-se um homem ponderado e silencioso. Alguém que procurava, pela prudência do agora, desvanecer um passado horrendo. Seu coração tornou-se em pouco tempo empedernido.
Não era mais capaz então tampouco de arrepender-se do que fizera antolho. Tornou-se Porfírio difícil nas relações, desconfiado de tudo e de todos. Via em tudo algo querendo o iludir, o induzir a erro, engambelando-o.
Nem mesmo no irmão e na cunhada, seus únicos amigos, a sua verdadeira família, ele conseguia confiar. O veneno mordaz que a flecha do cupido deitou em suas veias, atingindo-lhe o coração deixara severas sequelas.
Fechou-se Porfírio numa redoma, escondeu-se o moço por detrás de um escudo que o protegia o coração, mas qual coração? Tornara-se esse órgão vital uma pedra de gelo que pulsava insensível em seu peito, imune ao calor, a qualquer calor.
Foi esse Porfírio que o tempo construiu.
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O Fantasma do meio-dia
RomancePorfírio é um bibliotecário que se vê, subitamente, exposto a um grande erro do passado. O romance se passa durante o período de ouro dos jogos de cassino no Brasil, em uma encantadora cidade de Minas Gerais. Um amor impossíel, uma traição covarde...