Dizem que o amor não morre. É que em certos casos ele se transfere de uma pessoa à outra. Daí dizerem, também, que nada melhor para se esquecer um grande amor, uma grande paixão, que outro amor, outra paixão.
Porfírio se livrou do amor, ou, melhor dizendo, da paixão que sentia por Carminha graças aos livros.
Logo que começou a frequentar a biblioteca, ainda sob o comando de seu antigo bibliotecário, numa tarde cinzenta, Porfírio se viu frente a frente com Carminha, na Praça Dr. Pedro Sanches.
Sentiu então libertar-se definitivamente da prisão. E se Porfírio esperava um final turbulento e incômodo, encontrou neste momento calma, sentiu uma profunda e serena tranquilidade que lhe deixou admirado. Enquanto guerreava consigo mesmo em esquecer aquela mulher que o fizera sofrer demasiadamente, enquanto ardia dentro do seu peito a chama, ainda que sonolenta, daquele amor de desventuras, lutou bravamente Porfírio para esquecer aquele rosto, aquele corpo, que fatalmente sempre o voltava à imaginação.
Desde o dia do casamento de Carminha com Euzébio, não ousou Porfírio pronunciar aqueles nomes nem em pensamento, mas o remorso, o ressentimento e, por vezes, até a saudade, o assaltava.
E se mais tentava se esconder de si mesmo, mais a si mesmo se demonstrava. Havia dentro de si, ainda, persistente, um fundo de amor por aquela mulher! Sofreu então ainda muito tempo, resignado. Sofreu de amor. O âmago dos seus sentimentos não podia revelar nem mesmo a si. Até que o dia finalmente chegou!
Estava a caminho da biblioteca quando percebeu Carminha vindo em sua direção. Que teste! Estava ela sozinha. Não havia ninguém para impedi-lo de promover alguma investida, de tentar conversar com ela, de buscar um olhar, aquele olhar apaixonado de outrora! Era o grande momento!
Tudo aquilo que ele prometera a si mesmo estava agora à prova! O coração se lhe acelerou, seus passos tremeram, sentia toda a fraqueza que procurava esconder consumindo-o o espírito. Que prova cruel, que teste atroz, que momento decisivo!
Mas quando Carminha passou por ele, foi como se um sopro divino o refrescasse o peito. Sentiu Porfírio como se o veneno que o cupido havia derramado em suas veias no momento em que percebera amar Carminha perdesse o efeito; como se algo novo lhe desabrochasse em seu peito, não a flor negra da paixão, mas a alva rosa da liberdade; um antídoto celestial. Seguiu a passos leves o resto do caminho que o levava ao seu santuário, à Biblioteca Municipal!
Um sorriso lhe ganhou os lábios, seu rosto se iluminou. Eis que a parte do cérebro que se ocupava daquele amor havia sido desocupada para dar lugar a seu novo projeto de vida, à sua biblioteca.
Sim, é como se toda um porção de seu cérebro fosse um jardim salpicado por ervas daninhas, que matavam, ofuscavam, aturdiam as belas espécies que pudessem ali brotar. Como um lugar que era para ser belo mas estava juncado de pragas. Alguém, algum jardineiro divino ali chegara e fizera um trabalho de reconstituição do lugar, retirando as ervas daninhas, tornando a terra novamente fértil para receber as mais belas espécies que pode um jardim receber. Flores de cores vivas, plantas de verde vigoroso.
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O Fantasma do meio-dia
RomancePorfírio é um bibliotecário que se vê, subitamente, exposto a um grande erro do passado. O romance se passa durante o período de ouro dos jogos de cassino no Brasil, em uma encantadora cidade de Minas Gerais. Um amor impossíel, uma traição covarde...