No grande circo,
Anda-se em círculo;
Volta-se ao início
Quando se pensa avançar...
* * *
Porfírio seguira seu caminho como alguém que nascera novamente. Vencera, com o correr dos anos, a vergonha. Readquirira a confiança. Tornou-se sereno o bastante para embrenhar-se numa biblioteca. Encontrou a tranqüilidade que procurara naquele ambiente silencioso. Passava tanto tempo por ali que quando o bibliotecário que ali trabalhava se aposentou fora chamado pessoalmente pelo Seu Prefeito Municipal para lhe ocupar o cargo. A ele soou como um presente divino. A ele era como se ganhasse para si aquele lugar.
Poderia corrigir tudo o que passara tanto tempo pensando organizar. Chegou a sugerir ao antigo bibliotecário diversas melhorias e uma maior organização dos alfarrábios mas este, fatigado pelo tempo que ali laborava, se de início concordava e até marcava prazo para iniciar as melhorias, logo declinava e desistia da ideia, desiludindo Porfírio que nada, absolutamente nada podia fazer.
Mas, do momento de sua nomeação em diante a coisa mudava de figura. Tantos planos pré-concebidos, tantas ideias para se colocar em prática, tanto amor para deitar ali naquele lugar encantado que ficava nos fundos da mesma praça que há tanto tempo atrás via com olhos pedantes, ao som de Dvorak ou Wagner, sua Carminha passear mas que agora lhe se apresentava aquelas longínquas lembranças como retratos, fragmentos de vidas passadas!
Agradecido aos céus, compreendia agora Porfírio o seu destino. Fora preciso passar todas as desilusões de outrora para chegar ao apogeu de sua existência.
O pequeno prédio em estilo neo-romano encerrava em seu interior um tesouro infindo. Mas o prédio estava em frangalhos. Os livros necessitavam de maiores cuidados, estavam se deteriorando. Muitos simplesmente sumiam, estavam virando pó!
Pouco frequentada, com luzes que mal iluminavam, com mesas rabiscadas e perfuradas, ferimentos na madeira que os alunos que vez ou outra ali iam em busca do conhecimento mas que, por preguiça juvenil deixavam um nome impresso aqui, outro ali, uma marca para a posteridade. A escada que dava para as prateleiras mais altas, à moda das de farmácias estavam com alguns degraus quebrados, o que tornava a operação arriscada. As janelas sofriam com seus vidros quebrados, o que facilitava a entrada naquele lugar de barulho, vento e água da chuva. Água que vinha também do teto. Enfim, todo aquele acervo era um patrimônio comprometido.
Porfírio chegou com a determinação de um leão, com a altivez de uma onça, com a vontade de um domador e com o ímpeto de uma criança que vai pela primeira vez ao circo. Seus olhos brilhavam!
Fez uma lista de tudo o que precisava para colocar a sua biblioteca em ordem. Primeiramente, arrumar um lugar para transferir todo o acervo, e reformar o prédio. E enquanto a reforma se dava – fazia os cálculo – iria ele reconstituindo os livros danificados, catalogando todos eles, organizando as revistas, ordenando os jornais. Mas nada disto seria tarefa fácil, sabia. Não imaginava, entretanto, o quão custosa seria.
A princípio, o vento soprava a seu favor. Transferiu o acervo para uma sala vaga do antigo Cassino da Urca, agora transformado em Faculdade de Filosofia. O salão do prédio da biblioteca, vazio, mostrava todo o estrago que ali o tempo imprimiu. As marcas do desleixo estavam por toda parte. Do soalho ao forro. Da porta às janelas. Tacos soltos, paredes estragadas, vidros quebrados, telhas rachadas. O salão vazio ecoava a voz de Porfírio tentando convencer as autoridades municipais da urgência de se devolver à sociedade aquela biblioteca.
Sua voz, porém, pouco eco encontrava. Falava sozinho para o mundo. Sentia-se com um projeto magistral mas, segundo sua impressão, parecia soar aos seus como sandice. Como sandice? Sandice era deixar aquele patrimônio se desmanchar sob a ação do tempo! E os livros! Quanta dificuldade em os organizar. Logo percebera a armadilha em que caíra pois que no lugar para onde os livros foram transferidos, impossível organiza-los já que eles a custo couberam na sala cedida! Metidos em caixas de papelão iriam se estragar com a umidade do local, sem o socorro que Porfírio lhes prometera!
"Diacho" – pensava ele, "por tanto tempo desejei cuidar daquele lugar e agora que o pude, fui logo meter-me em sanar todos os problemas de uma só vez e acabei por não conseguir resolver o menor. Pior, acabei por fechá-lo, trancafiando todos os alfarrábios numa sala obscura que não me permite sequer manuseá-los".
E foi indo do gabinete do prefeito à sala do secretário de educação e dali à sala do secretário de cultura e dali ao padre para arrumar lugar melhor para colocar os livros que acabou conseguindo transferi-los para um vasto salão episcopal. Ali, com a ajuda de voluntários, começou sua obra de reconstituição e catalogação dos livros. Estava feliz!
Dois anos de profunda luta se passaram. Num belo dia, a soberba notícia!
Iriam começar a obra de restauração do prédio... era a eleição que se aproximava, só assim as coisas acontecem!
Paredes reconstituídas conforme o projeto original. Telhas novas no telhado, tacos novos no chão, vidros novos nas janelas, prateleiras novas nas paredes. Pintura interna e externa, móveis reformados e duas escadas de madeira para se atingir o alto das prateleiras. Mesas, belas mesas de estudo. Iluminação apropriada. Um sonho! O dinheiro traz os votos e os votos trazem o dinheiro; círculo mundano...
Depois vieram os livros. Estes já estavam em perfeito estado. Estavam já devidamente catalogados, organizados, num belo trabalho que Porfírio desenvolvera com alguns ajudantes.
Outros volumes foram adquiridos. Alguns foram doados. E lá estava o local abarrotado de livros, pronto a dividir suas dádivas com quem quer que se dispusesse receber.
Na inauguração, assustou-se Porfírio ao ver toda a sociedade parabenizando aquele já quase senhor que, todos diziam, apaixonado pelos livros, conseguiu vencer a guerra a favor deles.
_ "Esta vitória é de toda a sociedade, é do saber, é das nossas crianças e jovens que aqui encontrarão ambiente profícuo para desenvolverem a intelectualidade" – improvisava, mui eloquentemente um discurso o Prefeito, "e também é a vitória deste resignado e obstinado Sr. Porfírio, que com seu esforço pessoal conseguiu reformar esta biblioteca". Porfírio, ufano, não ousava fitar as pessoas que, admiradas, observavam o resultado de seu esforço.
A sociedade toda ali esteve presente. Porfírio sentia-se realizado. A menina dos olhos dele, sua biblioteca estava brilhando, debutando para toda a sociedade e isto o deixava deveras realizado.
Passou a ser então aquele local um ponto de encontro, agora muito bem frequentado. Ocorre que a sociedade não tinha muito o que fazer na biblioteca. Livros? Leitura? Não, havia coisa melhor a fazer! Por mais que se esforçassem, melhor estariam em bares, festas e bailes e para lá se foram, abandonando o lugar aos poucos os frequentadores de outrora.
Nesta época, já se ia embora de Poços de Caldas Euzébio, Carminha e as duas filhas menores.
A sorte grande os chamava à São Paulo, diziam...
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O Fantasma do meio-dia
RomantikPorfírio é um bibliotecário que se vê, subitamente, exposto a um grande erro do passado. O romance se passa durante o período de ouro dos jogos de cassino no Brasil, em uma encantadora cidade de Minas Gerais. Um amor impossíel, uma traição covarde...