O negócio prosperava. Corriam os anos sessenta, e Euzébio já dominava o fornecimento de mercadorias para toda uma vasta região. Seus caminhõezinhos – meia dúzia – percorriam as estradas do sul do Estado de Minas Gerais abastecendo as vendas das pequenas cidades.
Euzébio traçara as linhas que cada caminhão cumpria. Os seus funcionários deixavam a mercadoria encomenda uma semana antes, recebiam por ela e já preparavam o pedido para a semana vindoura, quando em nova diligência abasteceriam os mercadinhos e preparariam a encomenda da próxima.
Estabelecera-se em um armazém. Este era composto de um galpão, onde se recebiam as mercadorias dos fornecedores, organizava-se os estoques para serem remetidos aos compradores e de onde, naturalmente, se despachava as mercadorias ao atravessador, seus clientes que, por fim, conduziriam as mercadorias ao seu destinatário final, o consumidor.
Ele controlava toda aquela babel de seu escritório, um mezanino no fundo daquele cinzento galpão de 600 metros quadrados que ele adquirira nos arrabaldes da cidade, que não só mais do turismo vivia.
E estava Euzébio enriquecendo-se, se bem que à custa de de muito trabalho. Tornara-se um cidadão sério e ocupado. Nas pestanas daquele negociante pousava a honestidade, pesava a responsabilidade. No vasto bigode, que ostentava orgulhoso, dizia ele cada fio valer um contrato, sua própria palavra.
Para manter o controle da empresa que crescia, o número de funcionários aumentava. Duas secretárias anotavam os recados, deliberavam com o guarda-livros, cuidavam também dos papéis relacionados aos empregados. Havia mais duas moças que preocupavam-se exclusivamente com as contas a pagar. De uma infinidade de fornecedores ele dependia. Fornecedores esses que emitiam notas de pagamento em que um único dia de atraso podia redundar em grande prejuízo. Preocupava-se sobremaneira com a reputação da empresa e, por outro lado, fugia dos juros como o diabo da cruz, pois que os juros podiam abocanhar todo o lucro da empreitada!
Outra funcionária fiscalizava os recebimentos. Ao chegar, cada um dos seis motoristas vinham a ela prestar contas. Traziam o dinheiro, os eventuais cheques, um relatório do que haviam entregue em cada cliente com o abatimento de alguma devolução de mercadoria, por conta de algum defeito etc., que esta senhora anotava em uma ficha individualizada do cliente, pormenorizadamente.
Também chegava até ela o pedido da próxima semana. Dali ela despachava para o setor de compras, que avaliava o estoque dos produtos pedidos e repunha os faltantes. Avisavam, então, o setor de compras onde, após o visto do Sr. Euzébio, uma moça enviava, via telex aos fornecedores os pedidos.
No setor de despacho de mercadorias trabalhavam sete rapazes. Preparavam as encomendas, embalavam-nas, passavam um borderô para outro setor onde trabalhavam mais duas moças que emitiam as Notas Fiscais de venda.
Havia, ainda, o setor de recebimento de mercadorias, onde laboravam outros cinco rapazes. Recebiam as mercadorias dos fornecedores, conferiam as Notas Fiscais e colocavam estas mercadorias no depósito. Este era devidamente dividido por produtos, marcas, modelos etc. Tudo muito organizado.
Toda esta logística Euzébio desenvolvera com o tempo. E dez, onze, doze anos assim passaram céleres.
Mas se tudo corria bem nos seus negócios, em casa, a vida caíra num marasmo tal que fazia Carminha sentir apatia pelos negócios do marido. Ele lembrava a ela o número de funcionários que viviam sob a sua responsabilidade: _"Vinte pessoa, Carminha, vinte famílias estão sob a minha custódia, isso sem falar no porteiro, na moça do café, nas faxineiras..." e saía do prélio carrancudo.
Não sabia nem mesmo avaliar quanto, mas o fato é que estava indo deveras bem nos negócios. Não sabia como, mas conseguia controlar todo aquele emaranhado de pedidos e de despachos, de fornecedores e de clientes, de funcionários e de obrigações, trabalhistas, fiscais, financeiras. Estava ele a frente de um exército que lutava em campo aberto. Tinha conquistado uma região que, a despeito de não ser portentosa como outras, permitia-lhe viver e crescer, criar sua família e seu patrimônio, prosperar dignamente.
E, a despeito de toda a riqueza que o marido ia acumulando, Carminha continuava sua caminhada nada feliz pela vida que acolhera.
Estudara tão amiúde as lições da cartilha de matemática que era capaz de, pela resposta, lembrar o que pedia o exercício pois que tudo aquilo já lhe parecia muito comezinho e, sempre o mesmo tipo de garoto insistia em não aprender a lição, aqueles mesmos que distraíam-se enquanto ela repetia pela enésima vez o mesmo exercício, o mesmo exemplo!
A professora chegava mesmo a invejar a liberdade daqueles meninos e meninas, especialmente os piores - aqueles cuja liberdade parecia-lhe infinita! Sentia que a sua aula, a sua própria aula era muito cansativa. Nada de novo surgia!
Ao perguntar, as crianças pareciam escarnecer dela! Sentia a molecada mangar-lhe a todo instante! Sentia até um fundo de prazer nisto! Olhava os olhos vivaces dos meninos a lhe desprezar como que desejando mais desprezo. Que coisa enfadonha para estes garotos deve ser a matemática! e caía num desânimo petrificante. Era a própria vida que parecia lhe fugir!
Precisava parar, se aposentar, esquecer tudo aquilo, arrumar outra ocupação, não no armazém do marido, quiçá fazendo artesanato?
Quando o marido entrou em casa dizendo que arrumassem as malas pois que iriam vender tudo o que tinham em Poços de Caldas e partiriam para São Paulo, o sabor de uma nova vida lhe fez o sangue gelar nas veias. Era a primeira emoção que sentia em muitos e apopléticos longos anos.
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O Fantasma do meio-dia
RomancePorfírio é um bibliotecário que se vê, subitamente, exposto a um grande erro do passado. O romance se passa durante o período de ouro dos jogos de cassino no Brasil, em uma encantadora cidade de Minas Gerais. Um amor impossíel, uma traição covarde...