Quanto ao fato de Porfírio ter decidido se entregar à morte tão logo Robélio partisse para a capital paulista, devemos aqui uma explicação.
Sim, não existia outra intento no coração do ancião senão entregar-se à mais escura das noites assim que o jovem amigo partisse para a nova vida que se lhe surgia, ao novo horizonte que se lhe descortinava.
E assim o fez o pobre velho. Sentindo-se deixado para trás como um cão cujo dono muda de casa e, para começar vida nova, também o abandona, Porfírio esteve a meditar longamente sobre o caminho que seus dias lhe preparou. Ficava um tanto mais na cama a fim de deixar-se morrer um pouco mais a cada dia, como se não se morresse, de fato, um pouco a cada dia, cada um de nós. Assim esteve Porfírio se matando, dia-a-dia, deitado em sua cama, sem coragem de se levantar. Assim, na tentativa de se matar um tanto a cada dia, esteve ele a recordar-se do passado. E fatos pitoresco passaram a lhe visitar, diariamente, a mente. E se esses fatos não lhe tinham importância até então, passando tão despercebidamente pelo pensamento de Porfírio, tanto que até aqui foram omitidos nesse relato. Porém, esses mesmos fatos, mais que fazê-lo morrer, traziam-no à vida. Encontrava vida, Porfírio, onde desejava encontrar a morte. Que instinto é esse que faz de seres, dotados de tão opulenta existência como os seres humanos, se agarrarem à vida, mesmo que não a queiram mais? Que condão é esse que nos faz vicejar, mesmo sem o querer? Que laço é esse que nos faz prosseguir, que nos põe a respirar, que não deixa parar de funcionar o organismo todo, mesmo que o cérebro tenha desistido de avançar na longa caminhada?
Foi uma constante nostalgia, então, o que se seguiu a estas infrutíferas tentativas brandas e perenes – inofensivas, por assim dizer – de se suicidar passivamente, de dar cabo à própria existência.
Porfírio, ao lembrar-se dos pormenores, das minúcias, dos detalhes de um passado tão vibrante, pôs-se a perguntar em como tudo isso houvera passado no esquecimento até então. Seria, de fato, o fim da vida que se aproximava e que trazia, por isso mesmo, lembranças esquecidas daquele passado tão rico? Lembrava-se da época de ouro dos cassinos na estância, das aventuras que, nos seus doze, treze anos teve oportunidade de viver e punha-se a perguntar em como sua paixão por Carminha abocanhara com a fúria de um mastodonte, tudo o que de bom havia de recordações daquela época.
Lembrava-se, Porfírio, do dia em que, entrando como ajudante de manutenção dos holofotes de carvão, pode ver, apresentando-se no palco do Palace Casino Gloria Warrem, a própria atriz do filme "Para sempre em seu coração". A estrela estava ali, ao vivo, em pessoa, naquele palco mágico, como se o Céu descesse à Terra. Luzes coloridas faziam cintilar o longo vestido da atriz que, indo de cá para lá sobre um balanço que compunha o cenário tornava a musa mais bonita ainda. A plateia endeusava a moça! Porfírio via a cena com lágrimas nos olhos. Pensava já em Carminha. Seu coração vibrava perigosamente, balançava tal e qual o balanço que fazia a atriz levitar no palco. Era já o amor, o puro amor que estava no ar!
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O Fantasma do meio-dia
RomancePorfírio é um bibliotecário que se vê, subitamente, exposto a um grande erro do passado. O romance se passa durante o período de ouro dos jogos de cassino no Brasil, em uma encantadora cidade de Minas Gerais. Um amor impossíel, uma traição covarde...