Depoimento

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- Estava frio, e muito tarde. Todos já haviam se recolhido, até os criados estavam em seus descansos.
Não conseguia dormir, só conseguia pensar nas humilhações que eu havia sofrido nos últimos dias, em como a minha mãe não conseguia me defender, em como o meu irmão não ficou do meu lado...em como Charles não me amava, mesmo o amando com todo o meu coração.
E tais pensamentos me consumiam as horas, então me levantei da minha cama e sai do quarto para que eu não acabasse incomodando a minha família que já descansava do jantar de ações de graças.
Ao andar pelo corredor, eu ouvia as vozes do julgamento que ocorrera contra mim nos últimos dias. Os tapas, os gritos e toda a confusão que causei, mesmo sem a intenção de tal obra.
Desci as escadas e foi tão confortável ficar em pé a frente da janela, assistindo a neve cair, sentindo aquele frio noturno sobre minha pele...estava sendo de fato muito confortável ficar ali, parada, apenas pensando.
Mas confesso que mesmo pensando, lembrando de tudo, não consegui me desvencilhar das memórias de humilhação, e do quão humilhada eu fui.
Por um momento muito breve, quis a morte para que eu não fosse mais refém de tais pensamentos e sentimentos, pois a vergonha que me tomava era mui grande para que eu conseguisse suportar os dias após aquele, sem poder ser vista como "a quem fez tais coisas absurdas e arruinou a sua própria família"

- O que se propôs a fazer em seguida foi o que de fato arruinou sua família, e a sua vida, senhorita Katherinne.
disse o detetive Cameron, interrompendo brevemente o depoimento de Katherinne.

- Reconheço meus atos, e me alegro em não ser refém deles e de toda essa culpa por mais tempo que o necessário.
respondeu Katherinne.

- Então prossiga, senhorita. O que fez em seguida?
Cameron perguntou.

- Eu saí! Me direcionei para fora da casa, descalça e com pouca roupa a fim de buscar no frio da madrugada, a morte por doença.
E então eu vi dois criados saindo do celeiro, e o Crispin logo em seguida segurando um candelabro.
Eles não me viram, também não podiam já que muita neve caía e eu estava longe de suas vistas.
Fui até o celeiro, andando de forma totalmente automática, como se eu não comandasse o meu próprio corpo, e quando abri a grande e pesada porta de madeira, ouvi o seu ranger e fiquei receosa de algum criado me ver ali, e então ser alvo de inúmeras perguntas a respeito de minhas intenções, mas quando percebi que já não havia ninguém ali para que pudesse impedir minha entrada, continuei andando e fechei a porta atrás de mim.
O lugar grande e silencioso se parecia com a minha alma, fazia frio lá fora e até podia ouvir o som do vento que passava pelas frestas das madeiras...e meus olhos logo se direcionaram a uma navalha que estava posta em um toco.
A peguei em minhas mãos e vi meu reflexo em sua lâmina, fixei meus olhos e ao olhar meu próprio rosto no reflexo turvo da lâmina, me veio a brilhante ideia.

- E qual seria essa brilhante ideia, senhorita Katherinne?
indagou o detetive.

- Ora, não é óbvio? Acabar com o motivo da minha humilhação. Imaginei mil formas de arrancar de mim a vida lastimável que eu seria obrigada a encarar daqueles dias em diante, confesso que a pus em minha garganta e tentei reproduzir em minha mente como seria a dor da minha carne sendo rasgada. Mas fui covarde e não consegui fazer tal mal contra mim mesma.
Então escondi a navalha com o tecido do meu chale e voltei para a casa grande. Fui até o quarto de Madeleine, onde ela dormia com Peggy e Eleanor, a acordei tocando em seu rosto com meus dedos frios, e num leve susto ela abriu seus olhos.
A pedi que fizesse silêncio, e quando ela concordou, pedi que me acompanhasse.
Ela até que não hesitou, nem desconfiou...apenas me seguiu.

- Confiou na prima com quem brincava, e sem nenhuma malícia jamais imaginou do que seria capaz contra ela.
retrucou Cameron.

- O que posso dizer? Sou uma ótima pessoa, e nunca dei motivos para que desconfiassem de mim.
Mantenho meus sentimentos pelo Charles há um bom tempo em segredo, e só foram descobertos agora pois a tola da minha mãe se recusou a compreender a gênese deles.
Mas admito que foi difícil pôr em prática o que imaginei ainda no celeiro, depois de tentar fazer comigo mesma.
Enquanto descia as escadas com Madeleine, indaguei à mim mesma se teria coragem para tal coisa, mas quando ela começou a falar como se ela soubesse mais da vida do que eu, como se fosse melhor do que eu, com aquela voz insuportável de boa moça, eu não tive dúvidas do que queria fazer.
" - vamos apenas conversar sobre o que aconteceu entre nós duas." falei enquanto ela olhava a neve caindo pelo mesmo ângulo que eu momentos antes de estar ali com ela.
Ela falava " - tudo bem Katherinne, eu te perdôo, vamos esquecer isso" e só me dava mais fúria ainda.
Eu não precisava do perdão dela e nem de ninguém, se houve alguém injustiçado e prejudicado nessa história, com certeza esse alguém foi eu, e agora estou aqui acorrentada a essa mesa nojenta prestando depoimento sobre algo que não deveria ser da conta de um inútil que pensa ser detetive.

MadeleineOnde histórias criam vida. Descubra agora