10 - Onde morrem os nossos sonhos?

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Em toda a minha vida eu nunca vi Vicente chorar, nem mesmo emocionado. Ele sempre foi muito seguro, confiante, e dificilmente demonstrava nem se quer preocupação. E agora, estou ouvindo minha amiga descrevendo o estado que encontrou ele. Sentado na porta do lado de fora do meu apartamento? Jamais imaginei. E preciso confessar que isso me balançou, mas ao mesmo tempo a raiva me atingiu, por perceber que eu nem se quer o conheço de verdade.

- Eu sinto tanta raiva dessa situação. Ele tinha todo o poder nas mãos, e não fez nada! — eu nem percebi, mas ja estava aumentando o tom de voz — e agora que eu to me libertando? Não é justo, Helô! Não é!
- Calma amiga, você tem toda razão em estar assim. Você sabe o que eu penso da forma como ele te tratou durante todos esses anos, sempre frio e distante. Mas ver ele desse jeito, sei lá, nem parecia ele. Fiquei com pena, de verdade. — ela deu uma pausa e respirou fundo, como se tivesse com medo de usar palavras que fossem me deixar pior — Ele pediu para conversar comigo quando eu cheguei, por isso demorei um pouco.
- Conversar? E você aceitou? — pergunto curiosa, sem julgamentos. Confio na Helô, mas duvido das intenções dele.

Vicente nunca gostou muito das minhas amigas, sempre se referia em como elas eram soltas no mundo e não assumiam responsabilidades. O que eu sempre discordei, por que o fato de elas estarem focadas em suas carreiras também exige muita responsabilidade. E agora isso, ele querendo conversar, ja vejo inúmeras formas de ele querer manipular elas para colocarem algo na minha cabeça. E ainda o fato da Susan nem ter me procurado, depois de tanto tempo da separação, ela simplesmente se afastou junto.
Eu também não fui atrás dela, isso preciso reconhecer. Mas tem o Renato, e provavelmente Vicente estava precisando deles também. Enfim, preciso me acostumar que algumas pessoas eram mais próximas dele.
Mesmo eu achando ridículo, os amigos também fizeram parte da divisão de bens. Ainda que o divórcio nem tenha acontecido, tem muitas coisas que deixei para trás. Faz parte! Foi isso o que eu pedi, quando afirmei que deixaria tudo para ser feliz.

Eu sei que minha mãe no fundo ainda não aceitou bem a separação, por que ela também está distante. Quando ela faz isso, ja sei que não concorda com algo, mas prefere não interferir para não virar briga. Assim vou ficando de lado por todos, e vou entendendo melhor que na vida somos nós por nós mesmos.

Estou aqui sentada enquanto Helô vai contando o que conversaram. Nem parece que tiveram uma conversa de quase 2 horas, me pergunto como não percebi o atraso dela. Ela vai contando tudo em detalhes, mas conheço ela a tanto tempo pra saber que tem algo errado. O medo de saber o que é, me faz ficar aqui parada enquanto ela enrola na explicação. A mente não para, 50% ouve o que ela diz e tenta interagir, ja a outra parte... Essa ja está imaginando tantas coisas erradas. Só espero não descobrir algo que me faça odiar ele, ja é triste demais toda essa guerra para finalizar a separação.

- Helô, para por favor. Eu sei que tem algo a mais nessa história. Você ja me contou 3 vezes a mesma parte. Vai, fala. Eu to pronta.
- Então amiga...
- Diga logo, vai doer menos se você apenas falar.
- Eu não encontro uma forma, entende?
- Eu sei, mas ja me sinto mais tranquila. Pode falar.

Então ela para, respira fundo, e como se fosse perder a coragem ela apenas solta.

- Ele tem alguém... do trabalho.

E meu mundo parou.

Como se por mágica, vou encaixando todas as situações na cabeça. O fato dele não se importar se me perderia, ele me encontrando na balada, e depois ele não vindo atrás de mim. Claro. Como pude ser tão burra!

- Então era isso! — digo num susto enquanto a mente pensa neles deitados na nossa cama. Talvez enquanto ainda estávamos juntos. — Agora tudo faz sentido, ele me traia! — agora saiu mais como um grito.
- Calma amiga, deixa eu contextualizar tudo. Pelo o que ele me disse, nunca houve nada entre eles. Mas ele estava apaixonado, enquanto ainda estava vivendo com você. Ele me contou tudo, por isso preciso que você me deixe tentar encaixar os pontos. To muito nervosa, e não quero ser o motivo de brigas por falta de entendimento.
- Amiga, por favor! Você não precisa passar por isso, não quero saber de nenhum detalhe. Ainda mais por você, Helô! Que situação que ele te colocou! Não acredito! — digo ja interrompendo ela, em meio a gritos.

Como ele teve a coragem de usar a minha amiga, pra falar algo que ele foi covarde para me falar? Tantos anos de casados, tantas histórias, tantos perrengues que passamos para eu descobrir tudo dessa forma? Acho que pior que isso, seria eu chegar em casa e vê-lo aos beijos com essa pessoa... do trabalho.
Claro que era por isso que ele ficava até horas da madrugada trabalhando, me pergunto até se não era com ela que ele ficava falando dentro do escritório. Quem será ela? Secretária? Ou de outro setor? Um homem tão elegante, tendo um caso com sua secretária, parece clichê o suficiente.

A burra foi eu! Que deveria ter sido só uma esposa troféu, afinal tive o mesmo destino. Mas não, quis trilhar meu caminho e fazer ele sentir confiança em construir uma vida ao meu lado. Antes eu tivesse me acostumado com essa vida de apenas existir, assim ele ficaria feliz em me ter para mostrar aos sócios, enquanto transava na mesa do escritório com ela, a outra.

Quem estava se sentindo a outra, era eu...

MEUS DEUS! Que bobagens estou dizendo para mim mesma! Eu fiz tudo isso por mim e pela minha independência, e é consequência disso eu poder dar um pé na bunda dele e seguir meu próprio caminho. Não quero nada que é dele! Nada! Vou recomeçar por mim mesma, e abandono tudo que ele me proporcionou para trás. Eu sinto uma raiva tão forte, que decido resolver isso hoje mesmo.

Levanto do sofá, ja atrás das minhas chaves.

- É hoje que ele assina essa porcaria desse divórcio! — digo ja segurando minha bolsa e ainda procurando as chaves.
- Amiga, você não pode sair assim desse jeito. Você esta muito nervosa, tenho medo.
- Eu preciso encerrar isso na minha vida! — interrompo.
- Mas se acalme primeiro! — estamos falando alto pela adrenalina, mesmo que pareça que estamos discutindo.

Encontro minhas chaves, e vou até a minha amiga. Respiro fundo para reduzir o meu tom de voz.

- Desculpa Helô, a gente se encontra essa semana e comemora como se fosse hoje. Mas agora eu preciso ir, você pode ficar aqui o quanto quiser. Ja sabe onde deixar as chaves, não é? — do um beijo no seu rosto, me viro e saio sem deixar chances de ser convencida. A adrenalina está muito forte, e sinto que posso ter um ataque de pânico a qualquer momento.

Enquanto vou descendo pro estacionamento, fico repetindo na minha cabeça esses últimos meses. Fico imaginando tudo o que ele poderia estar fazendo pelas minhas costas, o quanto eu me culpei por essa relação falida. Entro no carro, e já procuro pelo envelope grande e branco, onde está o contrato de divórcio. Estou com uma cópia assinada a semanas dentro do carro aguardando a oportunidade, e será agora. Encontro em segundos, e sinto um arrepio percorrendo todo o meu corpo quando eu o seguro bem na minha frente. Quando foi que minha vida virou esse caos?

Fico parada encarando aquele pedaço de papel, tão ordinário, comum, branco e sem graça. E com tanto poder sobre a minha vida. Será que Vicente não quis assinar, para me guardar em um potinho até ele terminar a aventura secreta com a secretária? Nem sei que papel essa mulher exerce na empresa, mas quase consigo visualizar ele flertando com a secretária, enquanto eu estava sozinha em casa. Uma forte onda de raiva me invade de novo, ligo o carro e saio arrancando em direção a onde eu costumava chamar de lar. Olho para o retrovisor, vejo meus olhos marejando e rio desprezo.

Como pude ser tão ingênua?

Enquanto dirijo pela cidade, confesso que quase não vejo a estrada. Os olhos cheios d'água cobrem a visão e fazem as luzes dos carros expandir em três vezes a intensidade. Sem perceber, vou pisando mais fundo enquanto tento segurar o choro. Que bagunça eu estou!

Como se eu estivesse parada no tempo, tantas lembranças vão vindo. Até as lembranças boas, agora parecem mentira. Me sinto usada. Fiquei tão culpada pelo o que vivi com Pedro, e na verdade estava acontecendo algo muito pior antes.

Meu celular começa a tocar, olho no chamador e está escrito o nome da minha amiga. Ela tenta mais 3 vezes, e logo em seguida vejo o nome de Vicente chamando. Será que ela falou pra ele que estou indo ao seu encontro? Como ela pode? Eu queria pega-lo desprevenido.

O carro é automático, o que me da mais liberdade para entrar em parafusos. Que perfeito, não? E enquanto isso vou cada vez mais rápido, quero chegar logo, quero resolver logo! E mais rápido, mais rápido... estou em uma avenida de três pistas, e sigo pela esquerda. Todos os carros seguem na mesma velocidade que eu, então vou ficando confiante. Tão confiante, que nem percebo quando um carro corta a minha frente vindo da pista lenta. Foi tudo tão... rápido.

Não tenho certeza da sequência, mas lembro de um barulho muito alto e de repente tudo ficou preto. Mas não senti nenhuma dor. Ao contrário, pela primeira vez em meses, me sinto leve. Parece que estou caindo, voando, me soltando, estou leve. Que alivio. Me aconchego como um bebê, e relaxo... Me entrego.

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