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As complexidades da vida me levam a questionar a existência de tudo. Embora desde sempre fosse uma mulher que cultua de tudo um pouco, questiono até mesmo a existência de algumas divindades.
Honestamente, a vida já não tem mais ânimo desde que ele se foi. Todos os dias tenho pedido que seja apenas uma viagem, ele vai voltar, bater a minha porta e dizer: "Filhinha, eu estou aqui".
Como um soco no estômago, a realidade me atinge e me faz  lembrar que não, ele não vai voltar.

Desde o dia em que vi seu corpo gélido descer sete palmos a baixo da terra, ouvi os sons irritantes da areia batendo em cima daquele caixão fechado, senti que fui junto. Tecnicamente, meu corpo ainda vagava pela terra, mas meu espírito se foi junto do dele.

Desde que ele se foi, eu voltei para casa da minha mãe, não que eu estivesse forte o suficiente para lhe dar apoio, mas sabia que juntas faríamos companhia uma para outra.
Não consegui voltar para o trabalho e desde então, minha vida tem sido acordar e ficar apenas existindo.
Mesmo que minha amigas insistam em me tirar de minha casa, eu nunca aceitei. Não havia motivos para comemorar, não haviam razões para celebrar, meu riso não teriam sentido e nem mesmo os assuntos teriam tanta importância. Não valeria a pena me dar o luxo de sair e esbanjar falsas felicidades e sorrisos vazios.

Era assim que eu estava vivendo, há três semanas minha vida tem se resumido a madrugadas embebidas de lágrimas, manhãs de recuperação e tardes silenciosas. Até mesmo meu cachorrinho tem estado no mesmo estado de espírito que eu, talvez porque até ele tinha afeto e amor por meu pai. Embora eu morasse longe deles, Jonny e eu sempre vínhamos visitar meus pais aos fins de semana. Sempre fiz questão de manter a tradição de nunca abandonar a família, aconteça o que acontecer.

Enquanto observava a chuva caindo do lado de fora de meu quarto, notava as gotas escorrendo por minha janela. Os raios, relâmpagos e trovões já não me assustavam como antes, não pela minha idade, mas porque já não haviam emoções em mim.
Com Jonny deitado em meu colo, eu senti o roncado de sua barriga, logo lembrei que eu não havia descido para lhe dar comida. Automaticamente, lembrei que eu mesma não havia me alimentado o dia todo. Eu só havia esquecido, as horas se passaram e já eram 16:00.

- Vem, vamos cuidar disso, antes que um de nós dois morra de fome... O que não seria uma má ideia... Concorda? - Olhei para Jonny que me olhava com a cabeça inclinada para a direita. Com certeza estava julgando minha análise sobre a pior ideia possível.

Descemos juntos até a cozinha, ao passar pelo corredor notei minha mãe sentada no sofá olhando para a janela com o vidro embaçado e gotas de chuva escorrendo ali. Não fiquei observando mais a cena para não cogitar chorar, já havia feito isso durante a madrugada toda.

Jonny comeu sua ração e eu me contentei com duas bananas, enquanto eu falava baixinho com Jonny na cozinha, o silêncio instalado naquela casa era tão grande, que poderia escutar os soluços contidos de minha mãe. Mesmo que ela tentasse manter uma postura forte, sabia o quanto aquilo estava doendo nela.

Eu convivi com meu pai 19 anos, aos 20 saí de casa mas mesmo assim, sempre mantive a tradição de vir visitá-los. Durante esses 9 anos morando em outra casa, sempre fiz o esforço de que nossa convivência permanecesse, seja com ligações, visitas aos fins de semana ou até mesmo por mensagens. Mas nunca deixei que nossas relações se distanciarem.

Enquanto contava a Jonny sobre como havia sido minha madrugada (chorando por me sentir insuficiente e inútil por não conseguir fazer o mínimo como adulta, levantar e encarar a situação de frente), notei uma mancha na parede branca, era uma mancha marrom. Mas eu sabia que tempos atrás, aquela mancha na verdade era vermelha.

- Veja... Eu achei que tinham limpado isso... - Disse passando o dedo sobre a mancha. - Isso aqui, aconteceu quando meu pai estava cozinhando e acabou encostando o dedo na panela... Com o susto, ele acabou espirrando molho de tomate na parede...- Eu disse sorrindo mas não pude conter a lágrima descer em meu rosto lembrando da cena, faziam aproximadamente 17 anos daquilo,as ainda estava vivo em minha memória, bem como meu pai...

- Na verdade, ele se assustou com você chagando na cozinha...  - Minha mãe disse encostada na parede e me observando olhar para a parede machada, não sei quanto tempo ela estava ali nem o quanto ouviu eu falar com meu cachorro, mas quando sua voz chegou até mim, em um sobressalto senti um frio em minha barriga e logo fiz o possível para enxugar minhas lágrimas. - Era seu aniversário de doze anos, você estava contente por ele está fazendo lasanha e insistiu que houvesse molho de tomate. Ele quis fazer uma surpresa mas... Você sempre foi muito curiosa.

- É como se eu pudesse visualizar a cena ainda, como se eu pudesse ver isso de novo... - Eu disse ainda encarando a mancha na parede

- Eu sei, eu sinto isso... Mas aconteceu.

- Aconteceu... - Eu disse saindo da cozinha de cabeça baixa, não conseguiria ou ao mesmo queria olhar em seus olhos, estava tentando evitar toda carga emocional que viesse até mim, já estava cansada o suficiente.

Ao chegar em meu quarto, chequei o telefone e havia mensagem de Thaísa e Carol Gattaz em um grupo novo entitulado de: "Operação salva-vidas"

"Amanhã, na casa da Daroit" - Thaísa disse

"Fechado" - Gattaz confirmou

"Vocês tem quantos anos? Que nome é esse? E o que vocês estão planejando na minha casa?" - Eu coloquei ainda confusa

"Até amanhã, às 10:00" - Thaísa finalizou

Só me restou aceitar, o que quer que seja que as duas estivessem planejando, eu apenas aceitaria e receberia elas na manhã seguinte.

O anoitecer foi igual a todos os outros das semanas passadas, vazios e frios. Assim se manteve até a madrugada.
Eu já tinha noção do tempo, só sabia que estava de madrugada por conta do movimento na rua que se tornava mais fraco.

PétalasOnde histórias criam vida. Descubra agora