Moro na cidade, mas é comum que eu vá para um interior onde há praias. Na praça principal, as casas são de alvenaria, mas onde eu fico, as casas são de madeira, altas, para evitar a maré que enche e seca. Quando a maré sobe, a água bate sob as casas, tornando impossível passar sem se molhar. Mas, quando a maré baixa, é possível caminhar de uma casa para outra.
As casas ali são ocupadas por 60% de pescadores, 35% de pessoas que passam as férias, e o restante está abandonada ou em construção. À frente das casas, há a praia; atrás, um manguezal denso, quase impenetrável. A maré enche de manhã e à noite, deixando pequenos canais perigosos, com correntezas capazes de afogar alguém facilmente.
Após um longo dia de igarapés e praia, deitei-me em minha rede. Era cerca de dez horas da noite, e toda a minha família estava dormindo em seus quartos. Minha rede estava no corredor, de frente para a cozinha e de costas para a entrada da casa. De repente, ouvi uma bola quicando. Não tínhamos crianças em casa, então me irritei, imaginando que fosse uma criança desconhecida.
Ajeitei-me na rede para olhar e me deparei com algo que nunca esqueceria.
Um menino estava parado à minha frente, com o corpo ensopado e uma bermuda florida rasgada. Sua pele era pálida, com um toque azulado, e seus olhos... seus olhos eram uma visão do inferno. Em seus olhos, havia brasas ardentes que pareciam sugar minha vitalidade, me prendendo num transe aterrorizante.
Tentei gritar, mas minha voz falhou. Ele se aproximou lentamente, os olhos queimando como fogo. Cada passo parecia ecoar no corredor, amplificando o horror. Senti um frio intenso percorrer minha espinha, e minha mente foi tomada por um medo primordial.
Lembrei-me de histórias que os pescadores contavam sobre espíritos das águas, almas perdidas que vagavam em busca de vingança ou companhia. Mas nunca imaginei que encontraria um desses espíritos. O menino parou a poucos centímetros de mim, e pude sentir o cheiro salgado e úmido de sua presença, como a maré morta.
Com um movimento lento e deliberado, ele levantou a mão e apontou para a porta dos fundos, que dava para o mangue. Tremendo, segui seu dedo com o olhar e vi a porta aberta, a escuridão do mangue me chamando. A sensação de estar sendo atraído para a morte era esmagadora.
Com esforço monumental, desviei o olhar dos olhos ardentes e fechei os olhos, tentando recobrar a sanidade. Quando os abri novamente, o menino havia desaparecido, mas o terror permaneceu. Levantei-me da rede e fui até a porta dos fundos, fechando-a e trancando-a com mãos trêmulas.
Aquela noite, não consegui dormir. O som das ondas e o farfalhar das folhas do mangue me mantinham acordado, como se o menino ainda estivesse ali, observando, esperando. Desde então os sons da maré me fazem lembrar daqueles olhos, ardendo em um rosto pálido e ensopado.
Nunca soube o que realmente vi naquela noite, mas uma coisa é certa: aquele menino não era deste mundo. E ele levou consigo uma parte da minha alma, deixando-me com a certeza de que alguns segredos do mar devem permanecer intocados.
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histórias noturnas
Short StoryApanhado de contos de terror e horror sobrenatural autorais com cada conto tendo uma temática diferente, do irreal ao real. Aviso para leitores com leitura sensível