[and i never saw you coming]

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Estou colocando outro livro na sessão de romances históricos quando escuto um latido esganiçado, abafado pelo vidro da porta principal.

Ergo os olhos, procurando por Sarah ao mesmo instante.

Estamos em outro dia de trabalho na livraria nem tão tranquilo. Há uma agitação crescente desde nossos primeiros horários, que pelas sobrancelhas erguidas da loira, parecem explodir por agora.

Há o som do solado de sapatos de couro contra a escada no canto da loja, que leva até o pequeno apartamento acima. A batida ritmada parece combinar com o voz que inicia uma sequência quase que interminável de xingamentos. Por instinto, olho ao meu redor garantindo de que tenho algum escudo para caso a senhora entre pela loja com uma tesoura de jardinagem, picotando o máximo de livros possíveis.

— Sério, Senhor Williams, cortou as tulipas na porta da loja dela de novo? — Sarah é quem diz exasperada, em direção ao homem. O velho tem uma carranca nada agradável no rosto, enquanto continua marchando em direção à porta.

— Não foram tulipas, e sim peônias. — ele corrige como se houvesse qualquer importância em quais flores seriam. Já próximo à porta, Williams justifica. — Ela e esse guarda do inferno que deixaram o coco na minha porta ontem.

De maneira quase que instintiva, vejo que Sarah e eu o seguimos, com medo de que algo como as situações anteriores passe a acontecer.

Em partes, sinto-me aliviada em estarmos juntas ao menos dessa vez. Apartar o UFC da terceira idade não é muito fácil quando só há uma de nós presenciando.

— Ele não sabe como peônias são caras? — Sarah resmunga em um tom contido para mim. Dou de ombros, pois sendo sincera, também não sei o quão caras peônias são.

Quando Gia nota que o senhor se aproxima, eles trocam o olhar que sinaliza o início do primeiro round. Ao menos é o quê Mate uma vez comentou.

Um dia de trabalho comum. Somente um.

— Já disse que irei colocar esse cachorro mal acabado na churrasqueira se o encontrar na frente da minha loja de novo. — Williams gesticula parecendo os expulsar da calçada, como se tivesse tal poder.

Analiso os poucos livros que ainda seguro, questionando como eles poderiam ser úteis por agora.

— Não se preocupe, não tomarei muito do seu tempo, múmia. — Gia ergue um dos dedos a frente do rosto. Noto que a senhora usa um vestido com estampa de leopardo e um sapato vermelho, além do lenço que permanece em sua cabeça sempre que é vista. Uma combinação interessante, e excêntrica, assim como ela.

A loira ao meu lado ergue as sobrancelhas compartilhando da minha surpresa com a sua fala, afinal algo que nunca ocorre é Gia tomar pouco de nosso tempo.

Há certo prazer distorcido entre os dois velhos que se recusam à levar uma vida mais tranquila quanto possível.

Qualquer sinal que um dos dois estejam evitando algo assim é no mínimo suspeito.

— Na verdade, se preocupe sim. — a senhora corrige. Ergo as sobrancelhas, interessada. — Não serão só esses livros de capa dura feitos da sua pele morta que serão transformados em pedacinhos.

Sarah volta à me encarar, com certa preocupação, mas também uma óbvia expressão à quem encontra certa graça na frase.

— Desde que nós não tenhamos que catar esses pedacinhos. — sussurro para a garota, que logo acena com a cabeça em concordância.

Por que acabo visualizando-me em um futuro onde tenho que varrer cacos de vidros?

A senhora pega o minúsculo chihuahua do chão, o quê substitui as imagens em minha cabeça por uma versão de Mate Jonas de poucos meses, assustado por um bicho tão minúsculo.

PELO O QUÊ LUTAR | [Em Andamento] Onde histórias criam vida. Descubra agora