୨୧ Imaturidade Insuficiente :: 02

3 1 0
                                    

Rosé se sentia vazia, como se um buraco tivesse se aberto dentro dela e sugado todas as suas emoções. Os dias passavam arrastados, sem propósito. Ela ainda evitava o museu e tudo o que pudesse lembrá-la da mãe, mas havia algo que a chamava de volta. Não conseguia evitar. Era como se uma força invisível a puxasse.

Certa manhã, após passar horas encarando o teto do quarto, Rosé decidiu voltar ao museu. Precisava daquele lugar, daquele silêncio que parecia compreender sua dor. As paredes do museu, antes um refúgio, agora pareciam mais um testemunho de sua perda. Mas havia algo ali que ela não conseguia deixar para trás.

Ela entrou pelas portas de vidro, logo cumprimentando o segurança com um aceno rápido e sem palavras. O som abafado dos passos no chão de mármore ressoava de forma reconfortante. Rosé caminhou lentamente pelas salas, passando por obras que já não lhe diziam tanto. Era como se as cores tivessem desbotado junto com o seu ânimo. Até que ela parou em frente a uma pintura que nunca havia notado antes.

Era O Pintassilgo de Carel Fabritius, uma obra pequena e delicada, mas que parecia brilhar na parede de forma quase sobrenatural. O pássaro estava acorrentado a um poleiro simples, a pena amarela e cinza bem destacada contra o fundo desbotado. Havia algo na vulnerabilidade do pequeno animal que a tocava profundamente. Era como se aquele pássaro, preso e frágil, espelhava o que Rosé sentia por dentro.

Ela ficou ali parada por um tempo que não soube medir. O mundo ao redor parecia desaparecer. Rosé se pegou imaginando o que o pintor queria transmitir com aquela corrente. Era como um lembrete constante de que algo tão incrível poderia ser mantido em um museu, preso, mas ainda assim, de alguma forma, intacto. Rosé sentiu um nó na garganta. Aquela pintura era um reflexo de suas próprias memórias: boas, mas presas, acorrentadas pelo que havia acontecido.

Enquanto olhava para o quadro, flashes de momentos com sua mãe vinham à tona. Lembranças simples, como as risadas na cozinha enquanto preparavam o jantar ou as conversas sobre sonhos que nunca seriam realizados. Rosé desejou poder voltar no tempo, desfazer os nós que o destino havia amarrado tão apertadamente.

Ela estendeu a mão, como se pudesse tocar o pássaro, e sussurrou para si mesma — Você não está sozinho.

O tempo parecia congelar, e Rosé sabia que aquele quadro se tornaria seu segredo. Um símbolo de tudo o que ela havia perdido, de tudo o que ela tentava desesperadamente segurar. Era um pedaço do passado que ainda a conectava a sua mãe, algo que ninguém mais poderia tirar dela. Naquele momento, ela decidiu que voltaria sempre para ver ele, que aquele pintassilgo acorrentado seria seu consolo silencioso.

De volta para casa, a atmosfera era pesada. Seu pai passava o tempo trancado no escritório ou saía sem avisar, deixando Rosé sozinha com seus próprios pensamentos. A presença dele, que antes era um conforto, agora se tornava um peso. Ela percebia os sinais: as ligações rápidas, os sussurros ao telefone, os sorrisos nervosos que ele dava quando achava que ninguém estava olhando. Era óbvio que havia outra pessoa. Rosé só não sabia como encarar isso.

Certa tarde, enquanto revirava as gavetas à procura de um carregador, Rosé encontrou uma foto de seu pai com uma mulher desconhecida. Estavam juntos em um restaurante, sorrindo de uma forma que Rosé nunca havia visto o pai sorrir antes. A data impressa no canto da foto indicava que aquilo aconteceu antes da morte da mãe. O estômago dela revirou. A raiva queimava em suas veias, mas ela engoliu, empurrando o papel de volta para a gaveta com um movimento brusco. Aquilo mudava tudo.

Naquela noite, ela decidiu confrontar ele. O pai estava na cozinha, uma garrafa de vinho pela metade sobre a mesa, e o olhar perdido em algum ponto distante. Rosé entrou devagar, cada passo ecoando em sua mente como um aviso para recuar, mas ela não podia mais ignorar. 

— Pai, eu vi uma foto hoje.

Ele levantou o olhar, surpreso com o tom da filha — Que foto?! — ele perguntou, com a voz pesada e a postura cansada.

Rosé respirou fundo, segurando a raiva que queimava em sua garganta — Uma foto sua com outra mulher — disse devagar, tentando manter a calma, mas sem sucesso — Você estava saindo com ela antes da mãe morrer, não estava?

O pai desviou o olhar, o silêncio preenchendo o espaço entre eles. Ele esfregou o rosto, cansado, como se as palavras de Rosé pesassem sobre seus ombros — Não é o que você está pensando, Roseanne — tentou justificar, mas a voz saía trêmula.

Não é o que eu estou pensando? — Rosé repetiu, sentindo a frustração transbordar — Você estava traindo a mãe enquanto ela ainda estava viva! Como você pode fazer isso com a gente?

Ele deu um passo para trás, tentando argumentar, mas as palavras não vinham. Era como se a culpa estivesse estampada em seu rosto. 
Eu... Eu estava infeliz, Rosé. Não era sobre a sua mãe, era sobre mim. Eu precisava de algo diferente, algo que me fizesse sentir vivo de novo

Rosé sentiu as lágrimas brotarem nos olhos. Ela queria gritar, quebrar alguma coisa, fazer com que ele sentisse pelo menos uma fração do que ela estava sentindo.  — E agora? Você acha que está vivo? Porque pra mim, tudo que sobrou foi uma vida quebrada, e você só piorou tudo!

O pai tentou se aproximar, mas Rosé recuou, os olhos ardendo de raiva e tristeza. Ela se sentia traída, não só pela infidelidade, mas por perceber que o pai já tinha seguido em frente, enquanto ela ainda estava presa no passado. — Você deveria ter sido honesto, pelo menos com ela! — ela disse antes de virar as costas e sair da cozinha, batendo a porta do seu quarto com força.

A noite caiu, e Rosé não conseguia parar de pensar na discussão. Sentia-se sozinha, traída, presa em uma casa que já não era um lar. Quando todos finalmente foram dormir, Rosé se esgueirou para a cozinha, procurando um alívio para a dor que sentia no peito. Abriu o armário e pegou a caixa de remédios. Seus dedos tremiam enquanto olhava para os comprimidos espalhados na palma da mão.

Ela pensou em engolir todos de uma vez, acabar com aquela angústia de uma vez por todas. A ideia parecia tentadora, uma saída rápida para um sofrimento que parecia interminável. Mas algo dentro dela a segurava. Talvez fosse o medo, talvez fosse o pensamento de que sua mãe jamais a perdoaria. Rosé sentiu as lágrimas rolarem silenciosamente, a frustração se transformando em um grito abafado.

Ela jogou os comprimidos de volta na caixa, com força, fechando-a como se quisesse trancar ali toda a dor que sentia. Se sentou no chão com as costas batendo nas portas dos armários por um tempo, encarando o nada, tentando encontrar uma resposta que nunca viria. Rosé sabia que não podia mais continuar daquele jeito, mas também não sabia como seguir em frente.

Subiu de volta para o quarto, onde a escuridão parecia acolher ela. Rosé se deitou na sua cama, abraçando o travesseiro enquanto lágrimas silenciosas escorriam pelo rosto. O quadro do pintassilgo apareceu em sua mente, acorrentado, mas ainda ali, sobrevivendo de alguma forma. Ela se agarrou àquela imagem, ao pensamento de que, por mais presa que se sentisse, ainda havia algo em seu coração que valia a pena ser mantido. Rosé fechou os olhos, desejando que o sono a levasse para longe daquela realidade, nem que fosse por algumas horas.

ᘡ    ۫    𖨂    𓈒   Querido Texas  ۟    ៹    𓂂Onde histórias criam vida. Descubra agora