Real?

33 8 3
                                    

                Acordo sonolenta, era madrugada. De novo. Mais um dia sem conseguir dormir bem. Pensei que isso tivesse sido corrigido, mas o dia de ontem foi exaustivo demais. O celular estava vibrando abaixo de meu ouvido, coço meus olhos com o dorso de minha mão. Agarro o celular que estava quase como escondido entre meu travesseiro e a cama.

"Otávio."

Encerro a chamada.

—Fala sério.

Olho para o horário – 4:56 – ali mostrava. Coloco o celular embaixo do travesseiro e antes que pudesse me acomodar sinto o incômodo do tremor novamente.

Agarro com força, era ele novamente. Atendo e o coloco sobre o ouvido.

—O que você quer? - Pergunto agressiva.

—Eu sinto muito. - Escuto um chiado alto vindo do seu microfone. Quase como um forte vento.

—Por que está me ligando a essa hora? - Deixo no vivo ao voz e coloco o celular na escrivaninha. Coço meus olhos novamente.

—Eu te amo, meu bebê. - A voz trêmula, parecia ter chorado recentemente.

—Para com isso. - Me levanto da cama e agarro o celular, indo para o banheiro.

—Está frio aqui em cima...

—Aqui em cima?! - Meus olhos se encontram comigo mesmo se olhando no espelho. — Pai, onde você está?! - Abro a porta do quarto, descendo as escadas quase como correndo.

—Eu sinto muito... De verdade...

—Pai! Onde você está! - Agarro a chave do carro que estava em cima da mesa. — Me responde!

—Apartamento Panorama, terraço.

—Você está bêbado não está? Estou indo ai. - Abro a porta do carro, apressada. A bato com força. — Saia do terraço, agora!

—Não, não venha... - A voz abafada.

—Cala a boca! - Grito apertando firme o acelerador. — Desce daí, agora!

—Volte para a casa minha filha... - Ainda chorava, como uma criança.

A escuridão, a névoa, sentia o clima frio entrar toda vez que aspirava, mas o calor do momento me impedia de sentir qualquer frio. O carro estava incontrolável, mas isso não era nada. Eu continuava o dirigindo, entrando dentro de calçadas a cada curva.

—Pai, eu estou chegando ok!? - Vejo o apartamento no fim da rua.

Puxo o freio de mão com toda força que tenho, o rangido dos pneus é alto o suficiente para ecoar sobre a rua deserta. Abro a porta do carro e a bato com força.

—Estou aqui pai! Estou aqui. - Falo pelo telefone.

—Vá embora! - Ele grita chorando do outro lado do telefone.

Aperto interfones aleatórios desesperadamente no intuito de que alguém abra a porta. Ninguém me atende. Agarro uma pedra que se escondia na calçada.

—Pai! - Gritava.

Mais uma vez, lágrimas. Lágrimas, catarro e... suor? Aquele sentimento é sufocante, mas minha respiração também dói. Tudo dói, meu corpo por inteiro dói. A fumaça que saía de minha boca era tanta que dava a impressão de que estava prestes a sair fogo pela minha garganta. Bato a pedra com força sobre a trava do portão.

—Pai, eu estou chegando!

A trava quebra, mas minha mão sangrava por completo. Jogo a pedra no chão.

—Parada! - Escuto a voz do guarda gritar do outro lado do apartamento. Enquanto apontava a lanterna para mim.

—Pai! - Corro para o elevador.

"Em manutenção"

Corro para a porta da escadaria. Estava correndo atrás de mim, mas isso não era a maior parte do desespero. Meu pai bêbado, chorando em um terraço. – Esse sim era o maior desespero. – Subia as escadas tão rápidas cujo os movimentos nem pareciam ser meus. A escada estava lisa, molhada. Mas nem sequer estava chovendo.

—Pare agora! - Ele ainda me seguia, era mais rápida. Por incrível que pareça.

—Pai! - Gritava, vendo a porta do fim da escadaria. — Pai cadê você! - O celular escorrega da minha mão, pelo suor, pela tremedeira, pelo desespero... Por diversos motivos.

Cai escadaria abaixo, o vejo se despedaçar em pedaços. A cada corrimão que bate. Caindo por cada lance de escada.

Eu abro a porta e por fim, vejo meu pai agachado. Banhado por algo que não reconhecia. Tudo estava repleto de algo líquido, que cheirava a... não... não pode ser...

—Pai! Para, para com isso por favor. - Ele agarrava o seu isqueiro. Minha mãe falou para dar de presente para meu pai quando tinha 7 anos. Era dia dos pais, não é o tipo de presente que se dá para um pai, mas era o que tínhamos para dar.

—Você não deveria ter vindo...

—Solta isso! Por favor, eu estou aqui. - Se aproximo lentamente, esticando minha mão sobre ele.

—Não! Eu não estou, eu sei que não!

—Está tudo bem! É culpa minha pai! - Grito, aqui ecoa na minha cabeça, como um julgamento.

"É culpa minha."
"É culpa minha."
—Está tudo bem, ok!? Eu te amo! - Eu grito.

—Não! Não ama!

—Sim! Eu te amo! A mamãe te ama! Nós te amamos! - Grito parando de me aproximar.

Ele fecha o isqueiro, fazendo o fogo se apagar. Ele sorri para mim.

—Eu te amo também. - Ele sorri.

Sua mão parece abaixar, ele finalmente... Eu consegui faze-lo desistir da ideia.

—Apague esse isqueiro! - Grito. — Venha, vamos embora... - Sorrio por um momento, mas ainda estava em desespero. Mas o alívio parece engolir meu peito.

—Eu mandei ficar parada! - O grito do guarda é cortado pelo barulho de 3 disparos.

—Pai! - O meu grito que percorre toda minha garganta, quase como arrancando-a.

O isqueiro escapa da mão de meu pai, três tiros acertam seu peito. Ele tropeça para trás enquanto o fogo começa a se espalhar por todo o terraço. Ele anda cada vez mais para o precipício.

—O que você fez! - Somente sabia gritar, desesperada. Corro em direção a ele, tentando atravessar todo o fogo que fazia uma muralha entre nós.

Estávamos finalmente tão perto, mas... tão distantes... O seu último passo para trás, que o faz por fim. Despencar, com um último grito.

Caio sobre o chão de fogo.

—Solene! Por que fez isso! - Grito.

O homem puxa meu ombro tentando desesperadamente me tirar do fogo formado pelo meu pai. Pelo suicídio de meu pai. Tudo estava embaçado, estava sem cor. – Eu realmente te odiava? – Pergunto para mim mesma. O fogo não parecia mais tão perigoso, eu não parecia mais real, a vida não parecia mais importante. Eu o matei, eu fiz isso. Isso é culpa minha.

A Garota Do Outro Lado.Onde histórias criam vida. Descubra agora