(23) «Sou somente um corpúsculo», de Liliana Jardim

36 3 1
                                    

Caminhando ao acaso os meus passos percorrem a areia escura da praia, ouço o bater ímpeto das ondas e eu acorrentada debato-me com os pés nas pedras e o olhar fixo no horizonte, delineando asas febris. Escondo os olhos, para esconder uma lágrima que desliza silenciosamente nestas horas que me cobrem

O horizonte fecha-se à minha frente, mas eu continuo a rompê-lo, a perfurá-lo, incessantemente, penetrando-o avidamente. Sou somente um corpúsculo que amanhece todos os dias, coberto de pontos escuros e claros, como o dia e a noite, como a mágoa e o prazer, como um voo atribulado de um pássaro sem cor, como a luz obscura do sol, como eu... e tu, em saudade

Liberto-me em sacudidelas intermitentes e repentinas, como os saltos de uma pantera emergindo e reinvento versos, tentando esconder as fissuras alongadas do tempo penetrando o corpo

O meu sangue, de vermelho vivo, esmurra-me o peito, através dos olhos os pássaros escalam as montanhas do teu corpo e as borboletas dançam na pele, ondulando o orvalho translúcido dos corpos.

Agarro-me à fimbria das palavras e vagueio nos poemas, onde os reflexos se entrelaçam como amantes insanos e os corpos diluem-se perdendo docemente as suas formas originais

Dissipo as nuvens de poeiras latentes e mergulho na plumagem intensa de sensações que percorrem o corpo, como o coro nocturno dos pássaros, inundando-o de brilho e de êxtase...

E o silêncio volta a fechar-se sobre mim, longínquo... como um monstro que nos acorrenta à vida, numa significação atroz do eu...longe do tu, no verso de um poema que ainda não concluí

OLHAR CEGOOnde histórias criam vida. Descubra agora