"Quem vai se foder essa noite é você, meu amor"

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"Run, baby, run"


O cetim da venda parece serrar minha pele conforme vou andando pela casa e observo o tecido vermelho em mãos. Faz uma semana que Willian não aparece e, dês de então, tenho vivido apreensiva da sua presença, temendo que chegue a qualquer hora sendo que, eu quero fugir e decidi que hoje é o dia. Se não apareceu até agora, acredito que ... não sei, talvez tenha ido para longe ou quem sabe até mesmo foi preso com alguma merda dele.

Eu tirei a venda, é claro e decidi que, as janelas aqui são de vidro e estão trancadas, então vou quebrar a maior, a do quarto, e sair por ela. A mochila em cima do sofá vem no meu ponto de vista e eu a pego. É uma mochila preta, normal, que eu achei largada no armário do quarto. Vou direto para a cozinha e pego os dois sanduíches embalados em um plástico filme que fiz e coloco na mochila que já está cheia com algumas roupas e alguns medicamentos, também coloco garrafas de água, um pote com frutas e barrinhas proteicas que achei em uma gaveta.

Acredito que Willian seja o tipo de cara que treina e preserva a saúde. Acabo sorrindo por pensar que, talvez, essa seja a única coisa sensata que ele faz, mas parece que terá que comprar uma nova dúzia de barras, porque estou levando todas. É fim de tarde e eu só tomei coragem para sair agora, a lanterna próximo a geladeira me faz tremer dos pés à cabeça, é como se ela me chamasse para pegá-la e ir embora.

Fecho a gaveta com os olhos na lanterna, paço as alças da mochila pelos braços e corro até o objeto, pendurando a alça dele no meu pescoço. Olho para a venda e, antes de ir embora, decido avisar a Willian que estou indo embora.

Pego todas as facas pequenas que ele tem na gaveta de talheres na cozinha e, com um montante em mãos, vou para o chão da sala, onde é mais espaçoso e começo a fazer meu trabalho com um sorriso no meu rosto.

Ajoelhada no chão, eu pego faca por faca e vou as posicionando conforme as letras se formam. Assim como no dia em que ele deixou um ‘corra’ no chão na minha casa com o vermelho sangue, eu escrevo agora com suas próprias facas:

VÁ PARA O INFERNO.

Acho irônico a forma como apenas uma faca sobrou e, com ela na minha mão, eu coloco a venda logo embaixo da frase e enfio a faca, atravessando o tecido de cetim e ficando presa no tapete logo abaixo.

-Merda! - sussurro quando ouço uma trovoada lá fora, me fazendo assustar.
Eu amaldiçoo o tempo, o céu e qualquer outra coisa pela ameaça da chuva, como se quisesse me impedir de sair. Mas eu determinei isso hoje e vou fazer, agora!

Saio correndo da sala, fechando o moletom preto sobre meu corpo enquanto vou para o quarto. A cama está arrumada, como se eu nunca estivesse dormido aqui, uma das lenhas da fogueira, na qual peguei mais cedo da sala, já está encostada ao lado da janela. Pego a madeira em mãos e olho o vidro, respirando fundo para o primeiro impulso de força que faço contra a janela. O baque é alto, mas não o suficiente para quebrar.

Tomo folego e tento mais uma vez, sorrio quando uma pequena trinca se faz e começo a fazer isso repetidas vezes, ficando mais desesperada a cada tentativa, porque é como se, a cada segundo que passa, ele fosse aparecer.

Meu coração bate descompassadamente quando outro estrondo é feito, não só do trovão lá fora, mas também quando o vidro se estilhaça em vários pedaços. Eu sorrio.

-Caralho! - comemoro em um grito quando corro para apoiar minhas mãos no batente da janela e tomar impulso para ir ao lado de fora.

O sol já está escondido pelas nuvens densas. Eu não faço ideia do que vou fazer aqui fora, não conheço nada aqui e muito menos sei onde estou, mas é maravilhoso ver o dia depois de passar tanto tempo vendada com medo de que ele estivesse me vigiando.

Jason passou um tempo fora e, eu nunca tirava a venda porque achava que ele estava do lado de fora da casa, me olhando através dos vidros das janelas. Aquilo me deixava apreensiva e com um medo gigante, lembro que até mesmo tinha começado a falar sozinha, chamando por seu nome e falando para que ele parece com brincadeiras sem graça quando ouvia um barulho que não fosse eu.

Um calafrio passa pelo meu corpo inteiro quando olho para trás à medida que vou andando a frente pela floresta, a casa branca com tinta descascando aparece na minha vista e o medo se instala em mim ao pensar se talvez realmente tivesse alguém comigo naquela casa, não Willian, algo mais, como um espírito.

Coloco as mãos nas alças da mochila, as apertando e sentindo a textura de espuma por baixo do tecido preto. Na mesma hora, as fotos e coisas que o homem me falou vem à mente, sobre Diego e a mulher coberta por cera. Volto a olhar para frente, engolindo em seco e temendo que algo ruim aconteça.

Eu odeio Diego, com todas as minhas forças. Não sei se realmente foi ele quem fez aquilo, mas se foi, me pergunto o que fez com que eu me apaixonasse por ele e, quando estava me ligando dizendo que queria voltar comigo, me pergunto se faria aquilo com meu corpo após me matar.

Entre as arvores, consigo enxergar uma estrada daqui a uns metros. Eu me apresso porque o céu me ameaça de um modo tão grande que temo ser condenada por ele. Me pergunto se seria melhor ter ficado mais uma noite, esperado o temporal passar, mas por aqui sempre esteve chovendo, eu não tive escolha a não ser minha liberdade.
Penso também que, talvez, quem tenha feito aquilo fosse Jason. Ele me ameaçou, me sequestrou, torturou um homem na minha casa, me fez de doida para a polícia, o que o impediria de fazer aquilo com uma mulher?

Soluço, nem percebo, mas meus olhos estão cheios de água. Eu xingo baixinho enquanto as enxugo e passo por cima de um galho, finalmente encontrando a beira da estrada.

Eu quero que os dois vão para o inferno.

Apresso meus passos e ando na beira da estrada vazia, parece que nenhum carro passado por aqui a semanas, e talvez nem tenha passado porque em nenhum momento ouvi barulho de carro naquela casa.

Sinto uma gota fria cair bem na ponta do meu nariz, eu olho para cima, sentindo a próxima indo literalmente dentro do meu olho. Abaixo a cabeça e passo a mão por cima, tirando o incomodo de lá. Observo as gotas, aos poucos, molhar a estrada, suas marcas vão se misturando e formando algo único conforme mais água cai. Solto um suspiro tremulo, porque agora acho que realmente fui burra pra caralho.

Olhando para frente, vejo uma luz a mais surgindo e, na mesma hora, começo a correr em direção a ela, percebendo que um carro se aproxima. Levanto os braços, os balançado de um lado para o outro.

-Ei! Aqui! - grito o máximo que posso, ao ponto de queimar meus pulmões- ei! Socorro! - percebo que, quando vem chegando, o veículo vai parando aos poucos.

-Graças a deus! - exclamo, olhando para cima e sorrindo. Quando o carro para do outro lado da estrada, eu ando em direção a ele. Porém, quando chego perto, ele arranca com tudo, acelerando e correndo para longe de mim. Eu fico boba, parada no meio da estrada, vendo o carro se distanciar e levantar água pelo caminho.

Já estou ensopada, da cabeça aos pés e o moletom parece mais pesado no meu corpo.

Um som altíssimo de freio é feito, eu observo o carro e vejo que fez uma curva, indo para o outro lado da estrada e ficando na mesma direção que eu.

Junto as sobrancelhas e torço os olhos, colocando a mão rente a testa para que as gotas grossas não me atrapalhem e, é desse jeito que sinto meu coração parar quando percebo quem é ou mesmo o que é.

Uma mão apertando o volante fortemente conforme o carro volta em alto velocidade e, a máscara de pele, com o sorriso de costura e manchada de sangue. Willian está no carro.

Eu poderia desmaiar aqui mesmo de desespero, mas seguro mais forte as alças da mochila e começo a correr. Ouço o carro se aproximando cada vez mais e as lagrimas derramadas no meu rosto não são controladas.

Olho para trás, ele está a cinco metros de distância e agora anda devagar, os faróis acesos me atrapalham um pouco, mas faz uma sombra minha no chão conforme vou correndo. Willian levanta um facão na sua mão, enquanto com a outra mão no volante, ele buzina, me fazendo assustar.

-Aí meu Deus, que merda! - ranjo os dentes em puro ódio e desespero, quando esse cara apareceu? Será que realmente esteve me vigiando esse tempo todo?

Não dou a mínima, eu tiro a mochila das costas e corro mais rápido. Ele não para de buzinar atrás de mim, o som não faz nem mesmo uma pausa, é contínuo e me irrita, me causa pânico.

Os passos vão diminuindo quando, aos poucos, percebo o veículo ao meu lado, andando divagar.

Coloco a mão sobre os joelhos e puxo o ar, chorando. Olho para o lado quando o barulho da janela se abrindo é evidente, a máscara olha para mim, parecendo sorrir e debochar da minha cara o tempo todo. Ele olha para o banco ao seu lado, e começa a fazer algo, ouço barulho de alguma coisa rasgando e, quando se vira para mim novamente, a venda vermelha que deixei na casa, agora está perfurada pelo seu facão.

-Vai se foder.

Olho para trás e, tomo coragem para correr no sentido contrário dele.

Olhando para trás, consigo ver sua máscara fazendo um sinal negativo com a cabeça pelo retrovisor. O carro da ré rapidamente e não demora muito para estar ao meu lado.

Willian para ele e sai do carro, me alcançando, agarrando meu corpo com o braço e prendendo contra o seu, seu facão encosta na minha garganta, me fazendo levantar a cabeça e olhá-lo.

Ambos estamos encharcados pela chuva e, com a noite começando, a única iluminação é o farol do carro.

-Quem vai se foder essa noite é você, meu amor.

Sua voz está grave, rouca, parece cheia de ódio. Consigo ver um ponto verde pelo buraco da máscara.

-Entra agora na porra do carro, se tentar fugir, lembre-se que sua amiga Ana ainda está solta por aí.

-Deixe-a em paz.

-Ela está, ao menos que você continue com esse merda- faz pressão com o braço da minha barriga e começa a me levar para o lado do passageiro no carro. Abre a porta- Anda.

Quando tira a faca do meu pescoço, tremendo, eu entro no carro, me assustando quando a porta é fechada com violência.

O observo dar a volta no carro e entrar logo em seguida, sentando-se ao meu lado.

Estou chorando como uma criança. Ainda não morri, mas sinto como se estivesse morta, porque tudo em mim dói.

-Se você continuar agindo desse jeito, nunca vou gostar de você, de nem uma maneira- tomo fôlego e o olho- não era mais fácil me conhecer normalmente e me chamar para sair?

Willian não responde de primeira, ele dirige de modo lento e parece focado na estrada.

-Seria. Mas eu não sou assim.

Obsessão às cegas Onde histórias criam vida. Descubra agora