XX

64 13 2
                                    

Marília Mendonça

Aquela noite no hospital mexeu comigo de um jeito que eu não conseguia mais ignorar. Sentada ao lado da cama da Maraisa, vendo-a lutar pela própria vida, algo dentro de mim desmoronou. Eu não podia mais fingir que estava tudo bem com Murilo, com a vida que tínhamos construído. Eu amava o Léo, meu filho, e sempre amaria, mas a verdade sobre meus sentimentos por Maraisa, que eu tentava reprimir há anos, agora estava impossível de esconder.

Dias depois, de volta à nossa casa, a tensão entre mim e Murilo era palpável. Ele era um bom homem, um ótimo pai para o Léo, mas as coisas entre nós estavam diferentes há tempos, mesmo antes de tudo isso. E eu sabia que ele sentia. Ele sempre soube que algo estava fora do lugar, mas nunca questionou diretamente. Até agora.

Estávamos na sala, o silêncio pesado, enquanto Léo brincava no quarto. Eu precisava falar, precisava tirar o peso que estava me esmagando, mas as palavras pareciam presas na garganta. Finalmente, respirei fundo e olhei para Murilo.

— A gente precisa conversar.

Ele não parecia surpreso. Largou o controle da TV, passando as mãos pelo rosto, exausto, como se já soubesse o que eu ia dizer.

— Eu tô ouvindo.

— Murilo, eu... não dá mais pra continuar assim — comecei, sentindo minha voz tremer. — Não é justo com você, comigo... com o Léo. A verdade é que eu tô vivendo uma mentira. E eu não posso mais fazer isso.

Os olhos dele se encheram de dor, mas também de uma compreensão amarga. Ele balançou a cabeça, como se estivesse tentando processar tudo.

— Você tá terminando comigo? — ele perguntou, a voz baixa, mas firme.

Assenti lentamente, incapaz de olhar diretamente para ele. Não era fácil. Eu sabia o quanto isso o machucaria, mas era necessário. Eu estava presa numa relação que, por mais que quisesse que desse certo, não conseguia sustentar.

— Eu sinto muito, Murilo — continuei, minha voz falhando. — Eu tentei, tentei de verdade, mas meus sentimentos... eles não são o que deveriam ser. Não do jeito que você merece.

Ele ficou em silêncio por alguns segundos, o rosto tenso, e então respirou fundo, como se estivesse se preparando para algo difícil.

— É a Maraisa, não é?

Meu coração disparou no peito. O choque da pergunta me atingiu com força. Não era algo que eu esperava ouvir tão diretamente. Murilo nunca havia tocado nesse assunto, mesmo que o silêncio entre nós às vezes gritasse sobre isso. Ele sempre foi paciente, sempre evitou confrontos. Mas agora... agora ele queria a verdade.

— Eu vi a forma como você olha pra ela — ele continuou, sua voz quase um sussurro. — Sempre soube que tinha algo... algo diferente. Mas nunca quis acreditar. Sempre achei que era só coisa da minha cabeça, que você ia superar. Mas agora... depois do que aconteceu com ela, é como se tudo estivesse claro demais. Eu preciso saber, Marília. É por causa dela?

O ar parecia ter sido sugado da sala. Fiquei ali, parada, sem saber o que dizer. Parte de mim queria negar, queria proteger Murilo de mais dor. Mas a outra parte... a outra parte estava cansada de mentir. Cansada de fugir da verdade.

— Eu... — comecei, mas as palavras me falhavam. Como dizer algo tão devastador sem destruí-lo completamente?

Murilo esperou, os olhos fixos em mim, e então me levantei, andando pela sala, tentando organizar meus pensamentos.

— Eu não queria que fosse assim — finalmente soltei, quase em um sussurro. — Eu tentei, Murilo. Tentei de verdade me convencer de que era só uma fase, que com o tempo isso passaria. Mas a verdade é que... sim. Sempre foi ela. Desde que éramos adolescentes, eu... eu amo a Maraisa de uma maneira que não consigo explicar.

A dor nos olhos de Murilo era palpável, mas ele apenas assentiu. Parecia que ele já sabia a resposta, mas ouvir isso em voz alta ainda doía.

— E você nunca me contou. — Sua voz estava cheia de mágoa, mas também de uma resignação dolorosa. — Você me fez acreditar que a gente tinha uma chance, que... que o que a gente construiu era real.

— Eu sei... — minhas palavras eram um pedido de desculpas, um apelo. — Eu sei que te machuquei, e isso me mata por dentro. Mas eu te amei, de verdade. Eu amo o que nós construímos juntos, o Léo, nossa família... Mas tem algo dentro de mim, com a Maraisa, que nunca desapareceu. E eu tentei enterrar isso, Murilo. Eu tentei de verdade. Mas a tentativa de suicídio dela... foi como um estalo. Fez eu perceber que não posso mais viver essa mentira. Que eu preciso ser honesta com você, e comigo mesma.

O silêncio tomou conta da sala novamente. Murilo passou as mãos pelo cabelo, visivelmente abalado, mas se manteve firme. Ele sempre foi forte, sempre soube lidar com as situações mais difíceis, e dessa vez não foi diferente.

— Eu só... — ele começou, sua voz embargada. — Eu só queria que você tivesse confiado em mim antes. Que não tivesse me feito acreditar que a gente podia ser algo que nunca foi.

Eu senti a culpa me esmagar. Ele estava certo. Eu deveria ter sido honesta desde o início, mas o medo de magoá-lo, de destruir o que havíamos construído, me fez adiar essa verdade por tempo demais.

— Me desculpa — murmurei, sentindo as lágrimas encherem meus olhos.

Murilo ficou em silêncio por um longo momento, e então se levantou, caminhando até a porta. Ele parou por um instante, sem olhar para mim.

— Eu vou ficar com o Léo essa noite. A gente conversa sobre o que vai fazer depois — ele disse, a voz baixa, antes de sair.

Quando a porta se fechou atrás dele, o peso da realidade caiu sobre mim. Eu tinha finalmente dito a verdade. Mas, ao fazê-lo, desmoronei a vida que havíamos construído. Eu sabia que as coisas nunca mais seriam as mesmas.

𝓡𝓮𝓵𝓪𝓬̧𝓸̃𝓮𝓼   𝓠𝓾𝓮𝓫𝓻𝓪𝓭𝓪𝓼Onde histórias criam vida. Descubra agora