XXI

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Maiara

No dia seguinte, quando Marília apareceu no hospital para visitar Maraisa, havia algo diferente nela. Ela parecia mais tensa, mais contida, como se carregasse o peso de mil pensamentos e não soubesse o que fazer com eles. Eu estava exausta, tanto física quanto emocionalmente, mas ainda assim, percebi os detalhes. Marília sempre foi transparente comigo e com a Maraisa, mas hoje havia uma estranheza no ar. Ela estava desviando o olhar, e, por mais que tentasse agir como sempre, algo estava fora do lugar.

Eu estava sentada ao lado da cama da Maraisa, segurando a mão dela, que agora estava mais quente e com uma coloração melhor do que na noite anterior. Os médicos disseram que o pior já tinha passado, mas eu ainda sentia aquele frio no estômago, a sensação de que qualquer coisa poderia acontecer. Ainda não era o momento de baixar a guarda.

Marília entrou, me cumprimentou com um aceno, e eu retribuí com um sorriso cansado. Ela se aproximou da cama, os olhos presos em Maraisa, e por um momento pensei que ela fosse desabar ali mesmo. Mas ela se manteve firme, embora eu pudesse ver o esforço que isso exigia. Ela passou a mão pelos cabelos, nervosa, e foi quando percebi.

A aliança.

Ela não estava usando a aliança.

Aquilo me atingiu como um soco no estômago. Marília e Murilo eram sólidos, ou pelo menos, era o que eu sempre imaginei. Eles tinham o Léo, construíram uma vida juntos. Era difícil imaginar Marília sem Murilo, até porque eu nunca tinha visto um sem o outro desde que começaram a namorar. Sempre foram aquela imagem de estabilidade que, em contraste com a minha vida e a da Maraisa, parecia inabalável.

Mas agora, sem a aliança no dedo, tudo parecia diferente. Eu tentei ignorar o nó que se formava na minha garganta. Talvez ela só tivesse esquecido em casa, ou estivesse lidando com algo temporário. Mas a sensação de que algo muito maior estava acontecendo não me deixava em paz.

— Como ela está hoje? — Marília perguntou, a voz um pouco trêmula, mas se esforçando para soar casual.

— Melhor. Os médicos disseram que ela está reagindo bem — respondi, mas meus olhos voltaram automaticamente para sua mão. A falta da aliança agora parecia um grito silencioso. — E você? Como você tá?

Ela hesitou, passando os dedos pelo pulso onde a aliança deveria estar, e foi nesse movimento que percebi que ela também sabia que eu tinha notado. Marília nunca foi boa em esconder emoções. E, por mais que tentasse agir como se tudo estivesse normal, a tensão estava evidente.

— Estou... me segurando — ela disse finalmente, mas sua voz vacilou. — É muita coisa pra processar.

Aquela resposta me deixou inquieta. Claro, ela estava passando por um turbilhão emocional, assim como eu. Ver a melhor amiga à beira da morte não era fácil para ninguém. Mas havia algo mais, algo que ela não estava dizendo. O silêncio entre nós cresceu, desconfortável, e eu sabia que, em algum momento, teria que perguntar.

— E o Murilo? — Minha voz saiu mais direta do que eu pretendia, mas já era tarde demais para voltar atrás. Eu precisava saber. — Onde ele tá?

Ela hesitou, e a resposta dela veio acompanhada de uma expressão de dor que era difícil de ignorar.

— Em casa, com o Léo.

Eu esperei que ela dissesse mais, que explicasse por que ele não estava ali com ela, ou por que ela não estava usando a aliança. Mas o silêncio se prolongou, e percebi que ela não ia falar mais nada se eu não perguntasse.

— Você não tá usando a aliança. — Soltei a pergunta antes que pudesse pensar duas vezes. O rosto de Marília endureceu por um segundo, e vi a luta interna que ela travava. Ela olhou para as próprias mãos, como se só agora estivesse percebendo a ausência do anel, e suspirou.

— A gente terminou, Maiara.

Aquelas palavras me pegaram de surpresa. Eu sabia que algo estava errado, mas não esperava que fosse isso. Terminar? Marília e Murilo? Aquelas duas palavras pareciam deslocadas na mesma frase. Marília não era o tipo de pessoa que tomava decisões impulsivas, e a ideia de que ela teria terminado um relacionamento tão importante assim, sem mais nem menos, me deixou atônita.

— Como assim? — Perguntei, minha voz carregada de confusão e incredulidade. — Quando isso aconteceu?

Ela passou as mãos pelo rosto, visivelmente exausta. O olhar dela estava perdido, como se procurasse as palavras certas, mas soubesse que não havia uma maneira fácil de explicar.

— Ontem à noite, depois que saí daqui. Eu... não podia mais continuar mentindo, nem pra ele, nem pra mim mesma.

Minha cabeça girava. Isso era grande, muito maior do que eu estava pronta para processar naquele momento. Marília e Murilo tinham um filho juntos. Terminarem parecia tão definitivo, tão irreversível.

— E foi por causa da Maraisa, não foi? — As palavras saíram antes que eu pudesse contê-las, mas no fundo, eu já sabia a resposta. E o silêncio de Marília confirmou o que eu temia.

Ela não me olhou diretamente, mas seu rosto se transformou, e foi como se toda a verdade que ela estava tentando esconder desmoronasse. Marília estava apaixonada por Maraisa. E, de repente, tudo fez sentido. Os olhares que eu não tinha notado antes, o jeito como ela ficava tensa quando Murilo estava por perto, a forma como ela sempre parecia mais próxima de Maraisa do que de mim.

— Quanto tempo, Marília? — Perguntei, mais suavemente dessa vez, mas ainda com aquela mistura de dor e surpresa. — Quanto tempo você sentiu isso por ela?

Ela ficou em silêncio por alguns segundos, os olhos fixos no chão. Quando finalmente falou, sua voz era baixa, quase um sussurro.

— Eu não sei ao certo. Talvez... sempre. — Ela balançou a cabeça, como se estivesse lutando contra as próprias emoções. — Eu tentei, Maiara. Juro que tentei enterrar isso. Eu amava o Murilo, amo o Léo... Mas o que eu sinto pela Maraisa nunca foi embora.

A ficha começou a cair, e com ela veio um turbilhão de emoções que eu mal conseguia organizar. Parte de mim estava brava, talvez até um pouco traída, por Marília nunca ter me contado. Mas outra parte de mim entendia o peso do que ela estava carregando, e o quanto isso deveria ter sido difícil para ela.

— E agora? — Perguntei, sentindo o coração apertar no peito. — O que você vai fazer?

Ela deu um sorriso triste, como se já soubesse que a resposta não seria fácil.

— Eu não sei, Maiara. O importante agora é a Maraisa. Eu só... — Ela fez uma pausa, respirando fundo. — Eu só sei que não posso mais fingir. Não depois do que aconteceu. Ver ela ali, tão perto de ir embora... foi como se tudo tivesse ficado claro. Eu não posso mais mentir pra mim mesma. Eu amo a Maraisa. Sempre amei.

Eu não sabia o que dizer. A revelação era enorme, e eu ainda estava processando o impacto disso. Mas, ao mesmo tempo, havia algo reconfortante em saber que Marília finalmente estava sendo honesta, não só comigo, mas com ela mesma. Ela havia carregado esse fardo por tanto tempo, e agora, diante da gravidade da situação, parecia que ela finalmente estava disposta a encarar o que sentia.

O silêncio entre nós se prolongou, mas dessa vez, não era desconfortável. Era como se estivéssemos reconhecendo o peso da verdade que agora estava à vista. Eu ainda não sabia como lidar com isso, mas uma coisa era certa: o amor de Marília por Maraisa era real, e, de alguma forma, isso mudava tudo.

Eu olhei para minha irmã, que ainda estava adormecida na cama, e senti um aperto no peito. Quando ela acordasse, tudo seria diferente. Marília estava pronta para ser honesta. Agora, a pergunta era: Maraisa estaria pronta para ouvir?

𝓡𝓮𝓵𝓪𝓬̧𝓸̃𝓮𝓼   𝓠𝓾𝓮𝓫𝓻𝓪𝓭𝓪𝓼Onde histórias criam vida. Descubra agora