11. Praia das memórias | Interlúdio 2

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| Ponto de Vista: Sophie

Retirei minhas botas pra sentir a areia cristalina em meus pés, esse cenário, ainda que falso, me trás uma boa quebra de toda a tensão anterior. Eu me lembrei que não me sentia em paz de verdade faz um tempo. E agora... esse céu estrelado, lua de queijo, até mesmo o oceano possui pequenas estrelinhas em si, sem preocupação alguma, carregadas pelas águas, igual quando eu era criança. E, merda, essa reflexão toda já tá ficando melancólica.

Decidi caminhar, olhos fechados, apenas sentindo o cheiro do sal do mar e os ventos bagunçarem meus cabelos, apenas meus calçados em minhas mãos, luvas agora sujas de areia. De repente, a luz aumenta, então, eu... estou de volta?

- Ei, Soph, vai ficar parada aí? A irmã Violetta tá esperando a gente pra lição de hoje! E tu sabe como o chato do Leone dedura a gente. Não tô afim de ficar mais quatro horas limpando a Catedral. - Meu irmão, ainda que não de sangue, Jack, ainda estava trajado com o uniforme da Casa dos Anjos, alguns dos detalhes tribais de sua terra em suas roupas, mesmo que o Papa vá desaprovar disso. O Jaques é realmente destemido, eu me lembro de crescer tentando imitar ele.

O continente de tribos e ilhas é de onde nossos pais, que não sabemos nem mesmo quem são, vieram. Já ouvi falar que, ao invadirem, levaram ele depois de seus pais perecerem em confronto. Minha origem ao renascer por aqui, porém, eu nunca soube, já que fui criada por um casal de idosos daqui, até aquela doença levá-los embora. Minha sorte foi ter encontrado pelo menos alguém em quem confiar.

- Meu jovem, amanhã o Sr. Dubois irá vir buscá-lo. - A irmã sorriu, suas mãos juntas pra baixo. - Agradeça à criadora por ter encontrado um lar. Ela lhe deu uma chance de ter uma família!

Eu tentei não pensar só em mim, tentei ficar feliz por ele, mas, por mais que eu tivesse comemorado e agradecido em minhas orações, a deusa e eu sabemos o quanto eu fiquei triste naquele dia, passei o dia todo tentando assegurar meu melhor amigo que ficaria tudo bem, que eu me comportaria sem ele por perto, mas, quando fomos para nossos dormitórios, eu afundei meu rosto no travesseiro e não deixei nem mesmo as outras meninas ouvirem meu choro. Lembrar de coisas tristes não é muito agradável pra mim, mas, se essa dimensão estranha está me deixando visitar tais lembranças outra vez, isso seria uma mensagem daquela garota misteriosa?

- Te vejo por aí, ilusionista barata. - Fiz uma careta e virei o rosto, ele deu umas risadas, em seguida, me abraçou, nós rimos como se fosse nosso último dia, também choramos, então... o moço de bigode por fim o levou consigo à cavalo.

Desde aquele dia, eu passei a subir até o telhado, todos os dias, desabafava com as gárgulas por uns minutos, então, às vezes, Gregorius me via e dizia que eu deveria guardar minhas palavras pro confessionário. Eu detestava sempre receber um sermão dele quando de fato o fazia, nunca estava tudo bem, eu sempre tava fazendo algo errado pra ele. Mais arrogante ainda, ele dizia que os ensinamentos divinos atestavam suas mesmas palavras e que eu estaria em perigo urgente se não o ouvisse. Alain, por outro lado, respirava fundo, prestes a outra vez se esforçar além da conta pra fazer tudo "certo", mal sabe ele que da próxima, ele vai ouvir é a mesma coisa de antes.

- Moreau? O que faz ouvindo minha confissão? - Percebi ele escondendo a irritação pra parecer o "melhor garoto do mundo". Confesso que isso já me fez detestá-lo antes, mas hoje eu entendo. Todos fomos parte da mesma cachorragem imposta a nós, sem podermos protestar ou sair daquilo. - Sabe que é errado fofocar, não sabe?

Meu riso saiu pelo nariz, eu após isso fiz meu melhor pra me recuperar enquanto a cara séria desse maluco não saía por um instante, como se estivesse congelado nessa expressão. A próxima memória é um pouco mais tenebrosa. Aqui estava eu, de castigo em um calabouço abaixo do orfanato, depois de tentar argumentar dizendo que cada um possui seu jeito de falar com a deusa e não devíamos cobrar um específico dizendo que apenas este funciona. Eu não consigo manter minha boca fechada, se o Jack estivesse nesse dia... Estaríamos juntos, ele me ajudaria a recobrar a confiança, me reafirmando que eles estão obviamente errados. Mas, eu passei todo o dia ali, temendo que um portal do Submundo fosse aparecer e me pegar por minha insolência, com apenas onze anos.

Eu guardo a amargura e latejamento em meu peito outra vez, enterrando-os para que não me deixassem pra baixo outra vez. Minha última memória da Casa dos Anjos é a na qual caminho em seguida, temerosa, mas, ainda assim, esperando entender o que me aconteceu, porque me sinto dessa forma mesmo que tudo já tenha ficado no passado.

Assim que entro, me lembro de ter conseguido meu elemento, eu usei para criar uma amiga "de verdade", a gatinha Noir. Ela se esgueirava, me contava tudo o que tinha ouvido, em troca, eu a alimentava com metade da minha janta.

- Existe uma tal substância que foi criada pra fazer as pessoas daqui terem alucinações com seres infernais e possuírem mais medo que o normal, foi a senhora Morgan Le Fay que encomendou, por sugestão do velho carecudo. Pelo que ouvi, é uma droga "psicoativa", ou sei lá o que aquele outro esquisitão tava falando. Agora, cadê minhas almôndegas, humana?

- Claro, mon chat. Aqui vai! - Sem nem olhar na minha cara, ela avançou na comida. Eita porra.

Qual é a melhor ideia nesse momento? Sair vazada desse país e ir morar na casa do caralho, mas, advinha a minha decisão? Isso mesmo, investigar por conta própria. A curiosidade ferrou a dona de gato. Outra vez, usei minha mágica, porém, dessa vez, foi pra me ocultar enquanto eu passava junto da imperatriz pelos corredores que levavam a uma "passagem secreta".

- Sou eu. - Ela bateu na porta, eu já conseguia sentir um futum de oitenta mil produtos químicos diferentes de lá de dentro. Como caralhos a Madam Le Fay aguenta esse cheiro!? - Preciso de um relatório sobre a produção do lírio.

"Lírio", então é esse o nome. Eu a segui correndo pra ter a oportunidade de entrar naquele esconderijo bizarro, então olhei em volta, realmente a coisa mais esquisita, tem até alguns tipos de monstros sendo preservados, alguns, possuíam características de outros. Nem quero saber como isso foi realizado.

- Senhora... Eu espantei o mal, e agora...? - Essa voz vacilante, um tanto apavorada, ela seria do Alain!?

Minha memória começa a se distorcer, alguém que não consigo identificar orgulhosamente declarou à imperatriz que estava pronto, e que o templário novato foi a cobaia perfeita para testar a extensão dos efeitos. Um borrão, que julgo ser eu, tentou atacar o responsável por tudo aquilo, apenas pra ser jogada para trás por ninguém menos que a própria Morgan. Havia um estranho brilho em seu olhar, ele quase me perfurava sem precisar de uma lâmina.

- Rebelde, não? - O desconhecido soltou uma breve risada. - E se eu pudesse testar nela também, para termos um comparativo?

Meu corpo, já sem energias, não pôde fazer nada, a não ser ouvi-los decidir meu destino. Não houve uma situação mais desesperadora que esta, pra mim, até hoje. Claro que todo aquele papo de "punição eterna" ainda mexe com a minha cabeça, mas, aquele era um perigo ainda mais plausível, ainda mais imediato. Eu me recordo de ter ficado tão apavorada, que desmaiei, apenas para acordar sendo carregada pra fora pelo garoto que não gostava. Pelo menos, já não estava mais lá dentro. Desde àquele dia, eu desejo me lembrar de como era aquele que conduziu aquelas pesquisas, para assim, poder chutar suas bolas eu mesma.

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