Olho para meus pés descalços dentro da poça da água que se acumulou chuva. Na calçada, agachada, transbordo-a a cada lágrima respingada.
Este é meu canto favorito, para onde me refugio até que ele vá embora. Talvez ele já tenha esquecido de quem sou, mas é melhor assim pois quando diz o quanto estou bonita em meu único vestido azul que ganhei da patroa da minha mãe, ruborizo. Não por estar sem graça, mas por medo, nervosismo pelo que aconteceria em seguida.
Pode parecer irônico, mas a palavra me enoja, sendo a única pela qual jamais me definiria. Meus pés são calejados por tantas corridas sobre a brita e embora doa e lateje prefiro-os dessa maneira, sujos, do que molhados e "limpos" pela água fria e choro que escorreriam por mim depois de pronunciadas todas as letras da palavra.
Prometi a mim que mesmo ele se livrando do meu único calçado, meus chinelos gastos, isso não me impediria de fitar novamente meu reflexo nessa poça da qual aprecio tanto pelo simples fato de se endereçar tão longe da minha casa. Por que é onde me sinto segura.
Devo estar vendo miragens! Um pai não faria isso com uma filha. Não a olharia dessa maneira quando a vê em seu único vestido decente, fungando-a com seu perfume que conheço tão bem, o álcool.
Se minha mãe estivesse comigo, me abraçaria e me ajudaria a elucidar meus pensamentos e, de algum modo, abrandar minha vergonha e desgosto pelo reflexo que revejo todos os dias. Mas ela não está. Não sei onde estaria. Pelas ruas, prosseguindo sua fuga? Ou no céu, redescobrindo quando era feliz?
Eu já pensei em fugir também. Mas como fazê-lo se não sei diferenciar a sanidade de um bêbado com a do meu pai? Embora no fundo me permita acreditar serem duas pessoas distintas, eu sei a verdade. Mas por outro lado, a cada dia agachada nesse mesmo lugar, gotejam de mim menos lágrimas pois percebo que não serão elas que me auxiliaram a erguer-me não mais para a vergonha refletida na água, mas para frente, calejando meus pés cada vez mais em direção ao horizonte onde o céu me engulirá na divisória da culpa de deixá-lo e do orgulho na coragem de usar meu vestido azul sem medo.
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Contos, Romances e Narrativas
Short StoryA bondade ultrapassa os sentidos do próximo quando estes jamais conseguiram ser conquistados sozinhos. Foi um sonho ou real? Quem foi Mia? E as cores faiscantes? Onde moravam? Questões implícitas através da realidade, a fome e o que esta é capaz de...