Bianca sentou-se na cadeira do seu quarto e olhou para o berço imaginário de seu irmão por longas horas e várias vezes ao dia. E o repetia com frequência. Fixava-lhe o olhar com incredulidade, sempre em choque: "Como seria bom tê-lo aqui" pensava. Este pensamento, porém, era fora de contexto e ela sabia disso pois nem sequer sabia o motivo de querer sua presença. Era simplesmente um instinto pelo qual não havia explicação.
Geralmente, quietava-se no silêncio do quarto e viajava entre lembranças esquecidas em busca de algo pelo qual não tinha certeza. Somente quando adormecia via em seus pesadelos batidas, barulhos e o breu. Mas logo acordava com um grito e se lembrava que ainda tinha uma vida: fazia qualquer atividade monótona e rotineira e repetia o ritual. Algo a chamava e ela queria se lembrar, mas a cada novo detalhe, o mesmo sentimento a invadia: remorso.
Quantas noites não esteve entre a curiosidade e o conforto? Até que percebeu que nunca esteve confortável. Mesmo em seus dias comuns, quando fechava os olhos, ouvia um choro e sabia que não era o mesmo que lhe acordava frustrada de madrugada. Era uma súplica, um socorro. Não havia nada a ser feito, portanto ao acordar, fazia "companhia" à seu irmão através das lágrimas.
Meses passados, Bianca tinha mais conhecimento do que pensava. Quando o céu estava limpo e um passarinho voava, os detalhes lhe remetiam às lembranças dele. Sua mão minúscula que acariciava quando tudo ocorreu, seu pequeno corpo em seu colo... fora tudo tão rápido! Por mais que estivesse mais sã ultimamente, ainda gritava aos sonos: "Foi culpa minha! Foi culpa minha!".
Mais de uma vez se perguntou se estaria enlouquecendo. Até que as cores lhe provaram do contrário, sim, tudo fora real. O sinal vermelho confundido com o sinal verde. O branco da lanterna desorientada da bicicleta e o azul dos olhos dele se escurecendo com o fechar das pálpebras. E finalmente, o preto, última cor que vira depois de perceber o carro contra o poste.
Agora sabia da verdade. Então por que continuava passando noites em claro lembrando do seu irmão inerte no banco traseiro? Não via mais o sol com frequência havia já três anos; por dois meses ficou com anorexia grave e se isolava de tudo e de todos. Era preciso voltar a viver; mas para isso sabia que era necessário se perdoar pois quando o fizesse com sinceridade teria que esquecer das lembranças que tanto lhe custara lembrar e deixá-las no passado se quisesse aproveitar seu futuro.
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Contos, Romances e Narrativas
Historia CortaA bondade ultrapassa os sentidos do próximo quando estes jamais conseguiram ser conquistados sozinhos. Foi um sonho ou real? Quem foi Mia? E as cores faiscantes? Onde moravam? Questões implícitas através da realidade, a fome e o que esta é capaz de...