A pulseira

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Quando Mia me perguntava qual era meu passatempo favorito, sem hesitar eu lhe esclarecia: "olhar aquela imagem à nossa frente". Talvez eu pudesse chamar de figura, ou até mesmo de uma linda obra artística com toques cariscáticos e robustos. Mas tudo não passava de um "talvez" convencido, pois embora estivesse pintada na parede à minha frente, a ausência de luminosidade ofuscava minha visão.

Chegara um dia em que eu passei dias sem fazer nenhuma outra façanha além de meu passatempo. No quarto dia do processo, Mia me disse: "Pim, em três dias, fará uma semana sem comida e água". A voz dela soava doce para mim, como eu sempre lhe imaginei, não demonstrara preocupação na fala. Apenas um toque afirmativo.

Foi neste dia que meus olhos degradadamente começaram a fechar, não por medo, mas por não querer enchergar a realidade. Eu tinha este direito! A situação era deplorável quando os abria. E certamente ela tinha razão. Três dias, ainda com os olhos cerrados, percebi a fome novamente aparecer e bater na minha porta. Com força. Mesmo sabendo que teoricamente eu não tinha porta (ou teto). Pelo menos, eu tinha duas enormes entradas nas laterais do local fechado em que eu chamava de lar. Embora Mia o reconhecesse como túnel.

Dentre todos os sentidos dos quais eu ultrapassei, como o olfato quando sentia o diário cheiro matutino de lixo enviado pelo vento da manhã; a visão desnorteada da minha linda pintura na parede - a qual somente eu considerava - e a audição quando havia dias em que meus olhos novamente fechavam e a única voz que eu consiguia escutar perfeitamente era a de Mia (talvez pela doçura que trazia consigo). Mas o único sentido que eu não conseguia aguçar era meu paladar. Aliás, corrijo-me, gostaria apenas de senti-lo. Se eu o aguçasse seria mera consequência.

Certo dia, me recusei a abrir meus olhos definitivamente. Mas era preciso pois Mia me informou: "Pim, um homem chegará amanhã". Pensei em perguntar "quem?" ou "por quê?", já que sua afirmação era muito vaga. Mas as palavras não passavam de um ligeiro gesto de meus lábios.

À respeito do homem, minha primeira reação foi de chateação: Mais uma coisa para atrapalhar Mia em fazer meu passatempo favorito? Como se já não bastasse as cores que corriam como faísca, devido à alta velocidade, com rodas e dois pontos de iluminação em sua frente que, vez por outra, passavam de fora à dentro da minha residência e, em um piscar de olhos, Mia me contava, saiam afora também. Às vezes, estas luzes eram maiores ou menores, mas todas invadiam minha privacidade de um jeito ou de outro.

Uma noite, entretanto, essas cores faiscantes jogou uma caixa de papelão quadriculada, que hoje me serve de mesa para a comida que nunca tem ou de um improvisado coberto para dias que chove e essas cores jorram, em alta velocidade, água em mim e em Mia.

Mas o dia seguinte clareou, fiquei sabendo graças às informações de Mia. E meus olhos se recusavam a abrir. Abertos ou não, o curioso homem chegou - descobri ao ouvir seus passos - trazendo consigo uma caixa com algo dentro. Minha felicidade, a partir desse momento, foi realçada diante do propício pensamento de que aquela caixa poderia nos proteger ainda mais das águas que insistiam em nos molhar. Mostrou-nos o que continha dentro.

Houve, neste momento, a dízima oportunidade (ou talvez vontade) de abri-los. Mas diferente das outras tentativas, uma tontura interviu. Perante isso, permaneci como estava. Bastava ouvir as informações de Mia que estaria ciente do ocorrente.

Ele colocou em cima da minha mesa-nunca-posta uma grande tigela de moqueca e, em seguida, dois pratos, um de acarajé e outro de abacaxi. Mia o interrompeu: "Por que motivos o senhor nos daria esses alimentos?". Foi ignorada ou simplesmente não escutada, embora eu a tenha ouvido muito bem e com clareza. O que era curioso. Esta curiosidade, entretanto, não me distraiu a atenção do diálogo.

"Estes alimentos são para você" - o homem alegou calmamente. Não tenho ideia de como seria sua aparência, mas sei que sua bondade o torna belo.

"Agradeço. Mas não fico feliz em saber que o senhor tem dó de nós"- Mia retrucou um pouco mais ríspida. Foi novamente não escutada.

Eu continuei atento à discussão. Embora eu não estivesse ouvindo fala alguma. Apenas me lembro do cheiro delicioso desses típicos pratos que me fizeram automaticamente levantar vagarosamente os olhos e então, pude perceber a mão do fulano levar mais um prato à mesa. Este o qual não consegui identificar. Mas, ao levantar a mão, deixou cair uma pulseira vermelha. Não demorou para que eu presenciasse sua saída silenciosa.

Pensei em avisá-lo do esquecido, mas não tive forças o bastante e cai em um sono profundo. Desta vez, eu não fechei meus olhos por não querer enchergar a realidade e sim, por satisfação.

* * *
Quando acordei, não vi mais Mia e nem os pratos. Pensei que, portanto, que tudo não passara de um sonho. Gritei em seu chamado. Gostaria de ouvir a doçura de sua voz novamente, como de frequência. Até que eu parei e pensei minuciosamente. Estava enganado.

Quando fui procurar pelos pratos percebi que não estava mais com fome e observei meu pulso onde pude ver a cor avermelhada da pulseira.

E, desta vez, meus olhos estavam bem...

Abertos.

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