A Verdade?

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Quando me dei conta, já estava sentada na mesa de jantar ao lado de Marie. Ela, ainda vendada, "olhava" para mim sorrindo, como se esperasse que eu dissesse algo.

Eu olhei para o outro lado e me vi.

Sim, me vi.

Não como se fosse outra marionete ou um reflexo, não. Era eu mesmo, numa versão menor.

Pelas fotos que vi nos poucos álbuns de familia da mansão, esta era eu por volta dos 6 anos. Mas, isso não é o importante, o que importa mesmo é: como pode eu e "eu" estarmos juntas assim?!

Marie se levantou, estendendo-me a mão. Olhei para a outra eu, que continuava distraída com seu pedaço de bolo de morango, parecia nem ter notado a minha presença, muito menos a de Marie.

Fitei Marie, um tanto desconfiada.

-Eu te prometi a verdade, minha querida...-ela se aproximou, apoiando as mãos levemente sobre meus ombros. -Você não quer saber?

Assenti.

Meu corpo inteiro tremia, uma mistura de confusão e ansiedade. Já que estou aqui, vou até o fim; não tenho nada a perder...

Marie sorriu para mim, afastando-se em direção à porta que dava para o hall de entrada. Levantei-me e a segui. Caminhamos lentamente pelo hall até chegarmos às escadas, o som dos nossos saltos na madeira, ainda nova, parecia ensurdecedor comparado ao silêncio no resto da casa.

"Luna, estou indo..."

A voz de Sebastian chegou como um sussurro suave em meus ouvidos. Me virei, mesmo sabendo que não o encontraria lá, só para confirmar que ele tinha invadido minha mente mais uma vez...

Ele está vindo... Por que? Para que?

Será que já se cansou da falsa Luna? Só percebeu agora que "ela" não sou eu?

Sacudi a cabeça, não quero pensar em Sebastian em um momento como este. Eu não fui tão importante para ele, então ele também não seria para mim.

Olhei para frente, decidida a seguir Marie, mas... Onde ela tinha ido?

Eu estava parada na bifurcação entre dois corredores, para qual deles ela tinha ido? Olhei em volta, procurando por ela mais uma vez, só para confirmar que estava definitivamente sozinha.

-Veja bem...-a voz vinha de trás de uma das portas do corredor à minha esquerda, uma voz estranhamente familiar, tenho que dizer. -...nós já perdemos tempo demais com isso tudo e...

-E...-a voz de Sebastian fez com que eu prestasse mais atenção

-Agora eu tenho a Luna. Tenho que pensar nela e na minha esposa... Dar um futuro digno a elas...-"nela e na minha esposa"? Seria esse homem.... meu pai?

-Sinto muito William, mas, uma vez selado, o contrato não pode ser quebrado.-Sebastian disse sem nem exitar. Mesmo sem estar vendo, sabia exatamente a expressão fria que estava no rosto do meu mordomo nesse momento.

Me aproximei da porta e a abri um pouco, apenas o suficiente para que eu visse Sebastian de frente para alguém por uma fresta com cerca de três centímetros. Não conseguia ver o homem, meu suposto pai, por completo, apenas suas pernas cruzadas e um de seus braços jogados sobre o encosto da poltrona.

Aflita, continuei observando a cena. "Meu pai" se remexeu e continuou:

-Mas, uma vez que eu não tenho mais o mesmo objetivo, e, por isso, não pretendo ir até o fim com a minha parte...-meu pai suspirou, fazendo uma pausa de pouco mais de um segundo antes de prosseguir. -...Não há nada que você possa fazer, está em xeque Sebastian.

O silêncio tomou conta do ambiente, Sebastian estava... sem palavras? Estava em xeque?

Não. Não o meu Sebastian...

Sebastian nunca ficava sem palavras, nunca ficava sem saber como agir... E, se ele parecia estar, era porque ele estava planejando algo horrível em sua mente. Mas ele não seria capaz de trair seu próprio mestre, não é? Pelo menos, até onde entendi, ele servia ao meu pai. Não podia fazer algo que invalidasse o contrato apenas para devorá-lo, ele não agia assim..

-Agora saia, vou terminar de preencher estes documentos.-Meu pai fez menção de se levantar, mas antes prosseguiu. -Susan pediu para que eu acompanhasse ela e Luna em um piquenique familiar, com tantas tarefas da corte, tenho estado cada vez mais ocupado e sem tempo para elas... Você pode...

Eu pisquei, mas, mesmo se não tivesse piscado, os movimentos de Sebastian foram rápidos demais até para os olhos humanos mais atentos. Em menos de um segundo, meu pai se levantara e seu demônio agarrara-lhe pelo pescoço. Os olhos de Sebastian estavam de um vermelho tão vivo quanto o sangue que via escorrer por entre seus dedos vindo diretamente do pescoço do meu pai.

Sem nem pensar, empurrei a porta com força, não ia deixar que ninguém tirasse meu pai de mim "novamente" sem eu nem conhecê-lo, e Sebastian não era exceção.

-Sebastian! -gritei com força, sentindo minha garganta arder pelo esforço repentino.

Nada. O demônio à minha frente continuou impassível.

Corri até ele, se ele não estava disposto a me ouvir eu iria forçá-lo a isso, ele não poderia fazer nada contra mim. O contrato...

Droga, não posso contar com o contrato. Ele não estava respeitando sequer o contrato com meu pai...

Já estava preparando meu corpo para o impacto contra o corpo de Sebastian quando tudo desapareceu. Tudo o que eu estava vendo, Sebastian, meu pai, o escritório, tudo desapareceu. Foi como uma imagem em chamas, se dissolvendo pouco a pouco bem diante dos meus olhos...

E lá estava eu, parada no meio do nada, literalmente. A escuridão ao meu redor era total, como a tela de um filme quando termina, não tinha vestigios de que algo fosse aparecer após aquilo.

E de repente, a imagem voltou, da mesma forma que se dissolvera anteriormente, rodeada pelo fogo. Mas, desta vez, um fogo real.

Olhei em volta, a mansão da minha família, a minha casa, estava em chamas. Centenas de labaredas dançavam diante dos meus olhos queimando tudo o que eu tinha de mais precioso.

Eu já tinha visto esta cena uma vez, durante um sonho. Eu estava terminando de lanchar quando me dei conta de que estava presa em meio ao fogo... Mas neste sonho, Sebastian aparecia e me salvava no último segundo, me levando para fora da mansão....

E lá estava ele.

Impossível não reconhecer a figura de meu mordomo, com seus olhos ainda vermelhos, "me" carregando no colo. O uniforme chamuscado e rasgado contrastando com minhas roupas impecavelmente limpas e novas...

-Ele pode ser um assassino cruel...-Marie estava atrás de mim novamente, as mãos apoiadas em meus ombros -...Mas ele não é estúpido ao ponto de desperdiçar uma alma tão doce quanto a de uma criança.

Olhei para Sebastian, que agora "me" colocava gentilmente na grama.

Aqueles toques repletos de carinho e cuidado...

Não, sabia que Marie estava mentindo para mim... Algo assim é impossível.

Pela primeira vez desde que este "sonho" maluco começou, alguém me olhou. Sebastian agora me encarava com aqueles olhos cor de sangue... Ele olhava diretamente para mim, seus olhos, como duas adagas, penetravam fundo nos meus...

-Sebastian...-chamei, como num sussurro, o nome do meu demônio.

O demônio à minha frente sorriu para mim e, como num passe de mágica, tudo foi engolido pela chama daqueles olhos cruéis que continuaram a me encarar mesmo depois de tudo desaparecer.


Devorar-te-ei: memórias póstumas de um amorOnde histórias criam vida. Descubra agora