Sonho

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Joguei-me na minha poltrona e bufei, encarando os papéis bagunçados sobre a mesa, tinha sido um dia perdido. Não podia dizer que tinha avançado na investigação, mas pelo menos eu podia fazer uma pequena lista de quem entrara na sala e eu conhecia. Dificilmente algum estrangeiro seria o responsável pelos ataques... Que objetivo eles teriam pra me atacar?
Tirei as luvas e joguei-as na poltrona a minha frente, afundando-me mais na que eu estava sentada. Mordi o lábio, pensativa, e no mesmo segundo me lembrei de Ciel. Dos lábios dele, quentes, contra os meus... senti um calor descer por minha espinha; enquanto Sebastian me deixava entorpecida, Ciel me fazia sentir viva. Era como dois lados de uma mesma moeda, embora ambos não fossem certos para mim.
A porta do escritório se abriu bruscamente, provocando um estalo no meu corpo que estava tão relaxado. Sebastian entrou e caminhou a passos largos até a minha mesa, retirando um envelope do bolso interno do unifotme e estendendo-o a mim. Eu não sabia se ficava surpresa ou confusa com a chegada dele. Ao mesmo tempo que queria abraçá-lo, sentia uma aura diferente nele, algo que me mantinha afastada...
- Sebastian... - comecei, aceitando o envelope.
- Este é o relatório de hoje, aproveitei que tinha resolvido aquele pequeno contratempo mais tarde do que eu esperava e me adiantei para o baile a qual fomos convidados.
Instintivamente eu engoli em seco, sentindo algo travar na minha garganta e quase me sufocar. Sebastian estava lá. Eu não tinha o visto, sequer tinha sentido... Mas ele estava lá, e, se estava, tinha me visto. A questão era, o quanto ele tinha visto? Senti meu rosto queimar ao me lembrar de Ciel e imaginar a reação do meu mordomo acompanhando toda a cena em tempo real. Os olhares... o beijo... corei ainda mais.
- Me permite confessar uma coisa? - ele cravou os olhos nos meus; não sabia se era coisa da minha cabeça, mas sentia que e le estava tentando-me a dizer a verdade.
- C-claro... - ocupei-me em tentar romper o selo do envelope com as unhas, baixando o olhar
- A senhorita estava adorável no baile... - ele pegou as luvas que eu tinha jogado na poltrona e acariciou-as. - Eu tive de me retirar por um momento, para investigar mais de perto alguns suspeitos... e vi que aquele homem a acompanhava...
- Ciel? - voltei a olhar para ele, que só assentiu.
- Espero que ele não tenha lhe feito nenhum mal enquanto eu estava longe... - Sebastian soltou, mais como uma pergunta que como uma afirmação.
- N-não. Lógico que não Sebastian! E se preocupar com isso também não era sua prioridade lá. - menti, controlando meu rubor.
- Entendo... - ele fez uma pausa e analisou-me em silêncio, não era preciso fazer muito esforço pra saber que ele estava vasculhando minha mente em busca de algo, mas logo desistiu. - Sobre a dama que se passou pela senhorita...
- Também me intrigou. - entrelacei os dedos e descansei as mãos sobre o peito, apoiando meu queixo nelas - Imaginei que o ultimo ataque tivesse sido coordenado pela marionetista, depois de ver a cópia que ela fez de mim e como ela era realista. - ergui uma sobrancelha para Sebastian. Ainda não tinha me esquecido do que ele aprontou com aquela marionete... Não tinhamos conversado sobre isso ainda, e eu não tocaria no assunto. Isso poderia acentuar o abismo entre nós. - Mas você já deu conta dela e mesmo assim os ataques continuam. São dois casos isolados... O que quer dizer....
Ele sorria pra mim, visivelmente orgulhoso. O que me fez bufar antes de conntinuar.
- Isso está num nivel muito maior de anormalidade do que estamos acostumados. - suspirei, era tanto pra se pensar em tão pouco tempo que minha cabeça girava e chegava a me dar náuseas. - E o Kyro? - disse por fim
- Morto. - meu mordomo disse. Pura e simplesmente, só disse.
- O quê?!
- Já estava morto. Não sei a quanto tempo, mas quando consegui eliminar aquele lixo, seu noivo já não estava mais lá.
- Então não foi você?
- My lady... Costumo lutar mais honradamente por aquela que amo.
- O-o quê? - me estiquei na cadeira, acho que toda essa confusão acabou afetando minha audição
Sebastian soltou minhas luvas sobre a mesa e contornou a mesma, chegando até minha poltrona e ficando a alguns passos de distância apenas. Deu mais um passo e pude sentir a perna dele roçando no meu vestido enquanto ele avançava. Mais um passo, agora eu conseguia sentí-lo tocar minha perna, além do vestido. Ele se inclinou sobre mim e meu único reflexo foi fechar os olhos e virar o rosto um pouco, meu corpo nunca fora capaz de rejeitar qualquer toque ou atenção do meu mordomo, mas agora cada milimetro de pele se eriçava e se esforçava para empurrá-lo para longe. Mas ele apenas fungou o topo da minha cabeça e a lateral do meu rosto, farejando como um cão de caça. E em um instante seu semblante mudou.
- Fica dificil proteger alguém que não quer ser protegido, my lady. - ele disse sério, apertando as têmporas. Eu apenas o encarei em silêncio. - Eu sabia que tinha algo diferente assim que entrei, esse cheiro que está em você não vai sair nem com mil banhos. Esse cheiro sujo...
- Sebastian! - levantei-me e bati as mãos na mesa com raiva, não importa que motivos tivesse, isso não era jeito de se falar com sua senhora.
- Perdoe-me my lady... Mas fica dificil enxergar minha jovem dama que tanto amo sob esse cheiro putrefe. Aquele homem tocou em você, não tocou? Ele tocou na minha dama... Na minha dama....
- Eu não sou sua propriedade! - gritei, notando tardiamente que não era pra tanto e como estava sendo ingrata com aquele que sempre me protegeu - Não me trate como tal... - terminei num sussurro.
- Perdoe-me my lady... - ele fez uma reverência e antes que pudesse me dar conta eu já estava sozinha na sala.
Despenquei na minha poltrona. Não sei o que me deu. Eu simplesmente explodi e descontei nele todas as minhas emoções fora de controle... Tenho certeza que ele estava falando de Ciel quando comentou sobre o cheiro e sobre alguém ter tocado na propriedade dele. Desde o primeiro momento percebi que havia um atrito entre os dois, mas ainda não sei porque. Sebastian pode ter ciumes de muitas pessoas, mas não a esse nível. Nunca chegou a me desrespeitar por ninguém, ou por nada...
E ainda tinha o Kyro... O descaso fora do normal não me deixa acreditar que ele disse a verdade. Se kyro foi morto antes de virar uma simples casca, quando foi? Foi em algum momento entre a nossa discussão e o momento que encontrei-o no quarto? Ou foi no curto espaço de tempo em que estávamos conversando e ele se transformou?
Como iria explicar isso pra familia dele? Como pude permitir que algo assim acontecesse? Ainda mais sob minha supervisão?!

Devorar-te-ei: memórias póstumas de um amorOnde histórias criam vida. Descubra agora