Reincidência

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O tic-tac do relógio na parede me irritava profundamente. Talvez fosse o som repetitivo ou a demora de Sebastian, mas minhas mãos suavam de nervoso por sob as luvas chiques.
Segui o cronograma, preparando-me para o baile ao qual iríamos. Me senti fútil enquanto permitia que Meyre prendessse meu cabelo num coque incrivelmente alto e justo, enfeitando-o com pequenas presilhas de flores e, por fim, soltando os bobes para que alguns cachos emoldurassem meu rosto. Meu mordomo estava em algum lugar por aí lutando a minha guerra e aqui estou eu, como a garota mimada que sou...

-É meu dever... -defendi-me de mim mesma, lembrando mais uma vez do meu objetivo no baile: encontrar informações sobre o SM abusado que ousou entrar no meu território.

Além do mais, não é como se eu pudesse sair por aí correndo atrás de Sebastian. Além de eu fisicamente realmente não poder, os empregados tinham ordens expressas de me proteger em caso de ataque e, bem, habitualmente Meyre não demoraria tanto tempo para fazer um penteado.

-Já está ótimo Meyre, obrigada. Pode preparar a carruagem que em breve estarei descendo.

-M-Mas senhorita... -ajeitou os óculos nervosamente

-Tenho trabalho a fazer, é uma excessão à regra. Sebastian vai entender. -desviei o olhar do meu reflexo no espelho para o reflexo dela, mantendo-o firme. -Vá.

Uma reverência apressada e ela apressou-se para fora do quarto, deixando-me sozinha. Me admirei por mais alguns segundos, desde o vestido carmin que acentuava até as curvas que eu não tinha até o batom vermelho vivo em meus lábios. Imagino como deve ser a sensação de aproveitar tudo isso, quero dizer, como uma garota normal usualmente aproveita. Sem o incomôdo da lâmina de emergencia presa na cinta liga ou da pequena pistola disfarçada na lateral da bota, sem a incerteza de sua segurança também ... Deve ser bom, mas certamente não é pra mim.
Segui para o quarto de hóspedes onde Kyro estava, Marye tinha dado uma arrumada desde o incidente mas minha mente reproduzia a bagunça que meus olhos não conseguiam mais ver. Depois que o demônio se foi e me recuperei do ataque, percebi que meu noivo havia sido possuído por algo de fora da mansão. Talvez algo tenha se aproveitado para entrar nele no tal ataque do qual ele me acusava e se mantido adormecido até então ... Mas como essa coisa sabia da ligação dele comigo?
Eles tinham um contato aqui fora... um contato próximo a mim.
Aproximei-me da janela quebrada e toquei um dos cacos que ainda estava agarrado à moldura de madeira maciça, esperava que Sebastian estivesse seguro. Desde o encontro com a marionetista, nossa ligação estava meio abalada... Ele não me disse nada, talvez para me proteger da verdade ou talvez porque sabia que não precisava, mas eu sabia que algo tinha mudado entre nós. Não sei o que aquela desgraçada fez, mas ela conseguiu enfraquecer nosso contrato. A marca provava isso. Era como se estivesse bloqueada, dificultando a comunicação entre as duas partes, entre mim e meu mordomo...
Apertei com força o caco de vidro, descontando nele minha raiva e frustração. Parei apenas quando me dei conta da dor, mas o sangue já escorria dos dois lados do vidro. Passei a mão no lençol bagunçado que estava sobre a cama, pressionando fortemente contra o corte para estancar um pouco o sangue e não me sujar, de forma que não preocupasse Marye e não desse motivos para ela acatar as ordens de Sebastian ao invés das minhas.
Iria provar que era útil, não uma mimada mal acostumada como todos pensavam. Iria fazer valer o esforço que meu demônio investia em mim e continuar a investigação como uma boa servente da rainha faria. Como meu pai faria.
Ouvi o som de cascos batendo contra as pedras da entrada e me preparei para descer, fazendo um pequeno desvio e passando pelo quarto para pegar um novo par de luvas, escondendo o outro sob a cama para que Marye não o encontrasse. Chequei mais uma vez minhas armas e desci com calma, encontrando meus empregados reunidos ao pé da escada, todos me encarando numa postura exemplar e me reverenciando assim que cheguei perto o bastante.

Devorar-te-ei: memórias póstumas de um amorOnde histórias criam vida. Descubra agora