Capítulo Quatorze - O Assopro da Sereia

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   As palavras de Miranda ficaram ecoando em minha mente por tanto tempo que parecia que eu estava em uma caverna. A palavra "Aquam" estava em destaque nos meus ouvidos, tanto que parecia um marco em minha mente.

   Esse nome, percebi, tinha um toque majestoso e sobrenatural, combinando com a lembrança - alheia - que eu tinha do lugar.

   -E então... - disse Miranda, olhando para mim com um olhar apressado, tentando me mandar uma mensagem codificada. Apenas seu rosto estava para fora da água, mas eu podia imaginar a cauda escondida abaixo da superfície. - Vamos?

   -Agora? - eu já sabia que teria que ir rapidamente para o reino subaquática de Aquam. Só não imaginava que teria que ser tão imediato.

   -Não! Acho que podemos esperar até que encontrem Serena e a matem. - o tom sarcástico de Miranda pareceu combinar mais com sua aparência do que se ela tivesse falado seriamente. - Não vejo problema algum nisso.

   Minha meta principal era começar a ter raiva dela, mas não consegui. Em parte porque sua beleza não me deixava despertar um sentimento como aquele; em parte também porque eu entendia o motivo de ela estar agindo daquela forma: estava preocupada com a amiga. E por que não deveria? Até mesmo eu estava começando a temer pela vida de Serena.

   -Me desculpa pela pergunta inconveniente...

   -Está perdoado. - disse Miranda, me interrompendo.

   -..., mas é que ainda não pensei em como conseguirei chegar até Aquam. Se você não percebeu, não tenho nem nadadeiras, nem guelras. Ou seja, nadarei mais lento que você, e não conseguirei respirar por muito tempo embaixo d'água.

   -Se serve de consolo, posso resolver um desses problemas. O outro você precisará improvisar.

   -Mas... Qual deles?

   Miranda não demora muito para dizer, mas para mim pareceu que segundos tinham virado horas.

   -Posso ajudá-lo a respirar embaixo d'água.

>>>

   -Mas... Achei que não tinha como fazer isso.

   -É claro que tem. O povo das sereias retém uma grande quantidade de poderes. Alguns podem parecer bobagem para vocês, humanos; mas outros podem despertar sua curiosidade.

   -Está bem... Mas voltando ao assunto principal: Como você fará para me fornecer um suprimento de oxigênio quando estivermos lá embaixo? - gesticulei o meu indicador para apontar para baixo, em um gesto para expressar que eu estava me referindo à Aquam. - E, o mais importante: o processo será doloroso?

   -Não, não será doloroso. - disse Miranda, se aproximando mais de onde eu estava. - Talvez se você fosse uma garota, poderia ser constrangedor da sua parte. Mas como você é um garoto, então a experiência pode ser até prazerosa.

   A palavra "prazerosa" se negou a sair da minha mente. Comecei a rotular as ações que poderiam despertar constrangimento em uma garota, e prazer em um garoto. Todas elas, sem exceção, eram aceitáveis.

   -Mas se for para fazer, então será que ser agora! - exclamou Miranda, a todo momento olhando para trás, como se esperasse que algo emergisse naquele ponto. - Não sei quanto tempo temos para continuar conversando, mas sei que não é muito. A qualquer momento podem perceber que estou exposta na superfície. E você não vai querer estar perto para ver isso.

   "Além do mais, se me pegarem, o plano estará arruinado, e Serena e você não conseguirão mais conversar. Então, se ainda tem dúvidas da decisão à tomar, então sugiro que tire sua conclusão neste exato momento. E, se não o fizer, vou embora".

   -Não... Já tomei minha decisão. Pode fazer o que tem que fazer. Vou acompanhá-la até Aquam.

   Miranda ficou feliz pela decisão que tomei, mesmo tentando ao máximo não expressar isso.

   -Ótimo. Agora se aproxime.

   Então comecei a andar na sua direção. Quando cheguei na margem do lago, desamarrei meus cadarços e retirei meus sapatos. Descalço, entrei no lago com passadas lentas e sutis. A água estava fria, e logo senti que todo o meu corpo achava o mesmo. Minha nova preocupação, além de ser atacado por sereias furiosas, era de morrer de hipotermia.

   Conforme ia me aproximando de Miranda, percebia que o chão íngreme abaixo de meus pés começava a sumir, até que, para manter minha cabeça acima da água, eu tinha que mexer freneticamente meus pés, como uma cauda imaginária. Usei meus braços para me locomover pelo lago, até ficar há cerca de trinta centímetros de distância da sereia, que por sinal não estava tão perto quanto aparentava.

   -Agora, preciso que você não se mexa, ou sequer fale. - em vez de pedir para me aproximar, foi ela quem veio até mim. Quando a distância entre nós ficou quase nula, comecei a sentir vergonha da situação. Mas, de qualquer jeito, eu tinha que fazer aquilo. Pela Serena.

   "Mas, de certa forma, não será ruim", pensei.

   Miranda coloca ambas as mãos em cada lado da minha cabeça. Na região dos meus pés, pude sentir uma correnteza passar por eles, provavelmente surgidos devido ao movimento da cauda da sereia. Quando percebi a aproximação do rosto dela, me preparei fisicamente. Apesar de haver uma grande probabilidade de meu hálito estar com odor ruim, eu não estava preocupado com isso; nem com o que Miranda iria pensar de mim após o "beijo". Simplesmente sabia que seria por uma causa maior, e que se a situação fosse diferente, aquele ato não iria acontecer.

   Mas, se fosse Serena ali, seria diferente. Eu iria aproveitar cada segundo decorrente, mesmo que fosse uno. E, se fosse Sophia...

   Não precisei focar muito na segunda, porque os lábios molhados de Miranda encostaram aos meus.

>>>

   Há vários filmes de sereias que retratam essas criaturas como tendo gosto - ou cheiro - de peixe. Mas essa "lenda" é mentira.

   O beijo de Miranda era bem delicado, como se ela não quisesse aprofundá-lo e deixá-lo mais intenso. De olhos fechados, tudo o que podia fazer era aproveitar a ação - até porque Miranda era linda (mas sem se comparar à amiga).

   Então senti algo sair da boca dela e entrar dentro da minha. Um pequeno assopro. Será que era isso que eu precisava para respirar debaixo d'água: do assopro de uma sereia?

   Depois de aproximadamente seis segundos de beijo, Miranda me afasta dela com tanta brutalidade que achei que os ossos dos meus ombros tinham saído do local apropriado.

   -Pronto. O Assopro que passei à você vai ser o suficiente para aguentar pelo menos uma hora em Aquam. Mas temo que não tenha passado o suficiente, então aconselho-o a voltar o quanto antes.

   -Tudo bem. - não podia esquecer daquele lembrete. Minha vida passou a estar em jogo.

   -Bom... Então já é hora. Lembre-se de respirar normalmente, e evite abrir a boca à toda hora. E, acima de tudo, não fique longe de mim. Se se perder em Aquam, suas chances de sobreviver são um em cada trinta.

   Engoli em seco no mesmo momento em que ela mergulhou. A cauda emergiu, brilhando em contraste com as novas estrelas que haviam aparecido no céu, para logo em seguida afundar novamente. Temendo perdê-la de vista, inspirei o máximo de ar que consegui - apesar de não ser necessário devido ao Assopro de Miranda - e mergulhei.

Sereia - A Prisioneira Da ÁguaOnde histórias criam vida. Descubra agora