Capítulo Dezoito - O Dom de Ferbus

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   Não há como ver um lado bom daquela situação. Porque não tem. Eu posso perder minha perna, o Assopro da Sereia parece estar se esgotando, então ou eu morro afogado ou a pressão estoura meu cérebro. Mas se nenhuma dessas coisas tirar minha vida, com certeza o tridente daquele tritão vai fazer o trabalho sujo.

   Mas, mesmo com todos os fatores estando voltados contra mim, eu queria continuar lutando. Lutando bravamente pela minha vida limitada. Podia ser loucura, mas eu não queria ficar ali, inerte, esperando que aquela ponta do tridente perfurasse minha pele, ou que minha ferida na perna infeccionasse.

   Eu mexi minha cabeça para o lado, concentrando o resto das minhas forças nessa ação. Pela minha visão turvada, percebi que o sangue não saía mais tão fortemente como antes, significando que havia pouco dele em meu sistema circulatório. Minha cabeça começou a pesar ainda mais, e meus pensamentos divagaram drasticamente.

   Todavia, de um momento a outro senti a falta do contato do ferro em meu pescoço. Devido a isso, uma sensação de esperança cobriu meu peito de forma agravante, enquanto minha mente trabalhou de uma maneira a tomar uma conclusão quase inimaginável: que o tritão talvez tivesse ido embora.

   É loucura eu pensar nisso na situação que eu me encontrava, mas no momento estava sozinho. Miranda fora buscar Serena, e sabe-se lá quando voltará - se ela voltar. Vários imprevistos tornaram essa viagem um completo amontoado de problemas. Qualquer coisa poderia acontecer com Miranda no percurso que ela está fazendo. Ela poderia desistir da missão, ou ser capturada no meio dela. O que eu não quero que aconteça é que elas sejam pegas e punidas por minha causa.

   Mas quando achei finalmente que tudo poderia estar a salvo, senti novamente o contato do ferro do tridente, mas desta vez estava no meu rosto - mais precisamente em minha bochecha. Ele aplicou uma força média na área do meu rosto, fazendo-me endireitar meu corpo. Provavelmente esse era o intuito da ação.

   -Não se mexa, ser. - a voz era brusca e rígida, mas não sei se soou assim pela minha completa mudança auditiva ou se era mesmo dote de suas cordas vocais - se é que o Povo da Água tinha cordas vocais. - Intrigante. - disse ele, o que não entendi. Mas não estava em posição de entendimento plano. Meus neurônios trabalhavam cada vez mais lentamente. A vontade de fechar os olhos e me entregar para um descanso eterno parece cada vez mais forte.

   De repente sinto o ferro do tridente na minha outra bochecha. Desta vez, entretanto, ele me forçou a virar um pouco o rosto. Agora entendi sua expressão: ele estava me avaliando.

   -Muito intrigante. Um ser do Povo de Cima. Nos reinos da rainha Maravella. Ela adorará saber disso... - de repente sua voz desaparece. Penso que minha audição falhara, mas descobri em seguida que ele deu uma pausa pensativa - Como você consegue sobreviver aqui embaixo?

   Se eu contasse a ele - se eu tivesse forças para isso -, provavelmente estaria assinando a sentença de morte de Serena e Miranda - além da minha própria. Mas, mesmo se eu quisesse denunciá-las (algo que não queria), não tinha energia para isso. Meus únicos sentidos que ainda funcionavam era parte da visão, parte da audição e uma pequena porcentagem do tato. Se bem que minha visão está turvando-se cada vez mais.

   Novamente senti o tridente em meu pescoço, mas agora o tritão apertou com mais força. Tenho certeza que está escorrendo sangue por ali também. Meu próprio corpo se tornou uma espécie de fonte de sangue, onde o líquido escorre para todos os lados, e por todos os vários buracos e arranhões extras que ganhei nessa aventura aquática.

   -Você não respondeu minha pergunta, insolene. - continuou, mas desta vez não senti um tridente em meu pescoço. Senti... dedos. Dedos diferentes, com espécies de teias entre eles. Fiz o máximo para prender minha respiração, mas a forma como ele apertava meu pescoço tornava a tarefa de expirar e inspirar complicada (quase impossível). Meu corpo se impulsionou para cima - ou melhor, fui impulsionado, contra minha vontade.

Sereia - A Prisioneira Da ÁguaOnde histórias criam vida. Descubra agora