"Se quer conhecer a verdadeira faceta de seu marido. Volte para a sua casa agora". Essas palavras malditas ficavam martelando na minha mente. Aquela letra horrorosa escrito num bilhete num papel pardo e gorduroso ficaram surgindo a toda hora diante dos meus olhos como um tecido vermelho a balançar na frente de um touro. O que hoje encaro com uma libertação, na data dos acontecimentos que irei relatar, encarei como o início do meu inferno, que era muito mais sinistro do que aquele escrito por Dante.
Era uma gloriosa manhã em Londres. O vento frio das últimas semanas do inverno ainda soprava forte quando eu cheguei na minha segunda casa: o Royal Ópera. Era dia de ensaio e, como sempre, a perspectiva de me preparar para um papel tão grande quanto o de Norma me deixava excitada, quase num estado de êxtase, que só era sobreposto ao prazer que tinha em cantar. Meu material é todo canto e talvez isto e meu talento tenham me destacado como uma das melhores soprano do Reino Unido.
Mas voltemos aos fatos. Ao entrar no meu camarim, além de encontrar um arranjo com hortênsias e rosas, fui recebida pelo tal bilhete, que repousava soturnamente em cima da partitura que usava para ensaiar. Um pressagio calculado do que viria a seguir, certamente. Passei os olhos mais de uma vez naquelas palavras e, fazendo isso, sentia a ira toscana se agigantar com uma nota alta numa ária de Wagner. O que diabos meu marido estava aprontando?, soprava a semente da dúvida no meu ouvido. Eu precisava ir, precisa checar afinal, ninguém passa Fiorella Castromanni para trás.
Há de se deixar claro que, até aquele exato momento, Bill não me inspirava desconfiança, afinal éramos casados há dez anos. O mais feliz casal do mundo da ópera, falava-se. Eu, uma soprano com uma voz única e preciosa, e ele, o melhor diretor executivo que a Royal Ópera House havia tido. Havia paixão, amizade e interesses comuns nos negócios do outro. A semente do mal, lançada em terra fértil, germinou e criou a raiz de desconfiança, fazendo com que eu partisse de volta para nossa casa em Grosvenor Square. Mal me lembro como cheguei, mas tenho a perfeita lembrança de como todo meu ser ebulia, afinal aquele homem me devia a carreira e, modéstia a parte, a vida. Fui recebida pelo velho Peterson, nosso mordomo, que agora recordo, andava estranho há dias. Toda sua frieza desvaneceu ao me ver e ele empalideceu de morte ao perceber que a nuvem negra sob minha cabeça.
- Signora... - balbuciou o homem.
- Peterson - foi tudo o que disse enquanto caminhava em direção a escada, guiada pelo meu faro que dizia que precisava alcançar meu quarto.
- Não. Quero dizer...há trabalho sendo feito no quarto, ma'am - era visível que o sempre centrado Peterson estava consternado. Aquilo foi o suficiente para fazer meu sangue mezzo toscano se agitar ainda nas veias.
- Saia da frente, seu cão idiota! - ordenei avançando mais rápido - Ou farei de você meu tapete ao passar por cima. - o mordomo me obedeceu com uma hesitação temerosa e pude subir as escadas com passadas rápidas. Me lembro que achei o corredor ainda mais longo enquanto andava na direção ao meu quarto. Diante da porta branca que separava o mundo exterior do meu quarto, hesitei. Vendo com certo distanciamento a cena toda, este momento parece-me aquele instante de suspense quando a orquestra fica tão baixa que a plateia pensa que a música acabou. Por instante fugaz, entre a hesitação e o abrir das portas, as minhas atividades cardíacas foram suspensas e, quando abri a porta, e elas retornaram nunca mais foram as mesmas.
- William! - vociferei ao ver meu marido deitado na cama sendo cavalgado por uma mulher muito branca, esguia de cabelos negros como a morte. Ah, cena dramática! Nem Verdi, nem Puccini, nem Wagner poderiam ter musicado como o sangue me corria nas veias ou a dor no ego que aquela visão dantesca me causou. Ao som nada amistoso da minha voz, aqueles corpos se separaram e reconheci o sorriso da cigana Carmen de Olga Petrovna, uma mezzo soprano de menor monta. Bill, por sua vez, pareceu-me surpreso, mas não arrependido, talvez até aliviado. Não me lembro direito, afinal quando dei por mim, já estava atirando alguns vasos naqueles dois. - Vadia! Vaca! - dizia alto sem qualquer classe enquanto mirava no dois um vaso da dinastia Ming - Vagabunda - e lá ia um mais objeto voando até se espatifar em alguma superfície dura.
- Fiorella, meu passarinho! - Bill floreou a voz tentando empregar a mesma doçura que me conquistara uma década antes.
- Cale-se, seu crápula! - gritei no furor da minha ira e atirei um porta retrato de prata nele. Infelizmente, não chegou nem perto. Hoje vejo que realmente foi uma pena eu ter tido uma pontaria tão ruim. - Nada vai adiantar, seu traidorzinho! Seu rato! - quando virei-me para a russa, ela estava recolhendo as roupas espalhadas pelo chão - Isso! Cate toda sua imundície e saia da minha casa! Eu vou destruí-la, Petrovna! Você está acabada! Morta!
Olga parou o que fazia e lançou um olhar divertido e sorriu. Ah, quem me conhece sabe que, apesar do meu gênio por vezes difícil, sou bem pacífica, mas ante aquele sorriso de mulher fácil que usava o corpo (que não era lá essas coisas) para conseguir o que queria, era impossível não se tornar imediatamente o mais agressivo dos seres. Assim, me aproximei dela e lancei um tapa vigoroso, estalado na cara da maldita. Confesso que me doeu bastante a mão depois, mas me senti exultante em vez a marca quase vermelha da minha mão na pele branca dela.
- Saia! - ordenei enquanto ela arquejava ante o peso do tapa e ela não se fez de rogada. Saiu sem olhar para trás. - Agora, é a sua vez, Chambers! - sibilei tornando a atenção ao Bill que olhava aquilo estupefato. - Quero-a fora do Royal Ópera! Vou difamar sua amante...amanhã, ela estará acabada! - decretei sem titubear - Nem preciso dizer que se pegar ela de novo com você, eu juro que faço uma cena pública digna de ópera trágica! - ameacei fitando os olhos negros de corvo daquele homem. - Como você pode, hm? Depois de onde eu te tirei...
- Fiorella... - ele tentou intervir o homem sem muita emoção com os cabelos grisalhos caindo nos olhos. E eu o achava charmoso, Dio santo!
- Silêncio! - bradei erguendo a mão - Não preciso lembrar de que senão fosse pelo meu talento, você ainda seria um regentezinho de coral de paróquia do interior. Eu o descobri, eu o refinei, eu fiz você, Bill. E é assim que você me retribui?
- Não é conveniente - o infeliz quis novamente me interromper, mas sem sucesso.
- Quando - ali fazia o que melhor sabia fazer, descarregava com minha voz todas as emoções contidas no meu peito, portanto, era de se esperar que, ante aquela carga dramática dolorosa, estivesse praticamente cantando uma ária dramática wagneriana - Quando você morrer, ainda será mediocre, um desconhecido e, por Deus, eu o farei ainda mais quando fizer a todos saberem quem você é. Quando eu morrer, serei chorada, minha morte será lamentada pelas ruas da Europa. Porque eu sou o gênio desta casa, Billy, e você me trocou por uma meretriz barata que não entende a diferença entre Verdi e Wagner! - toda a minha ira castromaniana desceu sob o número 45 da Grosvenor Square durante meia hora sem que minha voz falhasse ou que minha preciosas pérolas, como chamo minhas cordas vocais, se cansassem.
William me deixou naquela mesma noite. Que fosse com o diabo! Eu queria sangue! Queria vendetta! Afinal, a minha honra e meu orgulho de Castromanni fora arranhado, me sentia ferida e queria ferir alguém. Na sanha de desfazer-me da minha ira, queimei tudo o que era do William na lareira. Cada objeto, precioso ou não, cada pequena coisa que me remetia a ele foi destruída. Amaldiçoei cada geração da família dele, amaldiçoei aquela russa, praguejei e perguntei aos céus o que havia feito para receber tal destino. Ao fim e ao cabo de tudo, cansada demais para falar, chorei até descordar.
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Primma Donna
ChickLitAos 45 anos, Fiorella Castromanni acumulou num curto período de tempo um número grande de perdas. Perdera o marido; o emprego como cantora lírica no Royal Ópera House; a voz e, a maior crueldade do destino, foi a perda da avó, a grande diva da ópe...