- Ah, poverina! - guinchou tia Ludovica quando entrei na cozinha com uma expressão de desespero no rosto na manhã seguinte. Ao acordar, minha voz havia sumido de todo, agora nem ao menos falar poderia - Mas que maldição! Vamos fazer um chá de gengibre... - e deu-me dois tapinhas vigorosos no rosto, conforme deve mandar algum livro de tradições das tias e avós italianas. Posso adiantar que chá de gengibre, mel, hortelã e qualquer tipo de remédio caseiro ou simpatia não resolveu e assim o foi pelos dias que se seguiram, os quais me permitir ficar trancada no quarto de vovó Pia, lamentando minha má sorte.
Localizados na parte leste, os aposentos dela eram grandes e espaçosos e nas paredes, haviam as lembranças de uma vida dedicada ao canto: fotos com sopranos famosas, tenores, presidentes, reis e rainhas, celebridades, cenas de suas grandes apresentações, ordens, medalhas e as honrarias de toda sua vida. Enquanto observava tudo, deixava que sua voz única e marcante ecoasse pelo recinto ao executar suas gravações num antigo toca-discos. Podia sentí-la e vê-la no palco a cada variação, a cada nota que emitia com perfeição. Ali deixava que a voz dela e os sentimentos ali empregados fossem os meus. Da morte, vovó cantava por mim e para mim como se estivesse de corpo presente ali ao meu lado afagando meus cabelos com seus dedos longos e robustos carregado de anéis. O ar tinha o cheiro dela, era um aroma doce e fresco como uma aurora da primavera com uma nota mais explosiva como uma ária que cresce aos poucos até explodir.
Percorri os três cômodos de seus aposentos lentamente como se cada objeto, foto, detalhe reconstruíssem e trouxessem de volta a figura robusta e magnífica de Pia Castromani. Ao alcançar seu quarto, me deparei com sua escravaninha. Era uma mesa de madeira robusta com uma explosão de objetos decorativos espalhados por cima. Havia um tinteiro de jaspe, um elegante relógio de mesa de prata, uma boneca russa de porcelana e, por fim, um porta retrato de ouro com a imagem de vovó toda cheia de sangue falso segurando nos braços uma garotinha loira de olhos muito azuis, a qual reconheci imediatamente como eu mesma na noite que, pela primeira vez, vi vovó cantando. A Pia da foto, ainda montada de Lucia, olhava com orgulho para a Fiorella pequena como se visse na pequena eu uma extensão para própria glória.
- Ai se me visse agora, nonna! - balbuciei com um fio de voz que me restava. Se Pia me visse naquele momento, me desprezaria por ter deixado um homem me arruinar. "Um Castromani nunca se deixa arruinar por um humano", ensinou-me certa vez com dedo de riste.
Vieram os dias e as noites e minha voz e suas notas douradas não voltaram, o que me parecia um mau agouro, um presságio de que não seria bom nem tentar, mas o padre Morello, que me visitou dois dias antes do funeral, disse era uma pequena tempestade e que logo o Senhor se mostraria através da minha voz. Ah, essa fé cristã! Que alento deve ser a quem se apega de fato a ela! Não tinha um pingo de fé que minha voz voltaria um dia. Talvez minha vida fosse ficar muda enquanto a rameira da amante de Bill seguia enfeitiçando homens com sua voz cheia de falhas rouca como um ganido de um lobo.
No mesmo dia da visita do padre, um outro sinal da minha sina malévola veio por meio da televisão. Em um canal de arte, Cristiano Pulciano, um famoso crítico de ópera, falava sobre sopranos da Europa e citou-me como "uma voz insegura e uma atuação forçada" e decretou que havia sobrevivido no mundo da ópera graças a boa vontade do meu ex-marido e ao meu sobrenome. Vi os olhos de titia e Bianca se dirigem a mim e senti o peso da piedade desse olhar, achei-os horríveis, piores que quaisquer olhar de asco.
- Pelo menos tão cedo minha odiosa voz não será ouvida... - reuni o nada que dispunha de voz numa tentativa forçada e patética de falar numa única frase irônica e me retirei da sala, seguindo diretamente para minha cama, onde o sono dragou-me de uma vez.
Vi-me no escuro, mas o escuro mais movimentado de toda minha vida. Havia vento ali, mas não havia calor nem frio. Parecia um espaço amplo, quase sem fim, onde uma brisa suave soprava num barulho constante como um rio.
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Primma Donna
ChickLitAos 45 anos, Fiorella Castromanni acumulou num curto período de tempo um número grande de perdas. Perdera o marido; o emprego como cantora lírica no Royal Ópera House; a voz e, a maior crueldade do destino, foi a perda da avó, a grande diva da ópe...