XV

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Nunca se sabe quando o destino está prestes se apresentar como aquele personagem arrebatador de uma ópera, aquele personagem que muda a ordem dos fatos, aquele capaz de reconstruir aquilo que fora destruído. Naquele verão na Toscana, ele se apresentou a mim desta forma. Não, por Deus, não estou falando do Marcello. Nosso affair está longe das fantasias românticas que embalam as histórias tolas. Era algo de descoberta, algo, por que não?, carnal. Obviamente, com ele, redescobri o que era arder nos braços de alguém. Mas não foi apenas este relacionamento que definiu o quão memorável e marcante seria aquele verão na minha vida.

Foi numa tarde calma e quente que Cesare Montecielo serviu de meu anjo Gabriel, o mensageiro das boas novas. Por meio de sua voz cálida e poderosa, fui convidada a voltar a cantar profissionalmente na meca da ópera mundial: o La Scala, em Milão. Eu não seria tão tola se não visse que as engrenagens do Olímpo da ópera estavam operando em meu favor.

- Signore Montecielo, é claro que aceito – respondi-lhe o convite sem nem mesmo deixar sua voz terminar de falar. Ele havia passado um tempo considerável, e desnecessário, em rapapés, relembrando o histórico dos Castromannis no Scala e elogiando minha performance no Signorelli. É de se imaginar o quão impaciente eu estava em responder logo aquele convite.

- Mas a senhorita nem mesmo sabe para qual papel que a queremos – disse o homem constrangido.

- Não creio que, dado o histórico do meu sobrenome e meu desempenho nas últimas apresentações, senhor e o corpo diretor daquela nobre casa me colocariam para atual em uma produção qualquer – respondi assumindo a firmeza necessária para a conversa.

- A senhorita tem razão – havia certamente um sorriso na voz do homem, ainda que fosse um sorriso constrangido ou amarelo, pouco me importava. – Mas acho que ficará satisfeita em saber que o Scala está montando para o próximo ano Lucia di Lammemor e a queremos como nossa Lucia.

Guardei silêncio imediato. Aquele papel que me era oferecido era o mesmo que consagrara minha avó, o mesmo que ela interpretava quando a vi pela primeira vez e seria no mesmo palco. As engrenagens do Olímpo gemeram e tinham a voz de minha nonna: Canta, figlia, canta.




- Você me parece mais intensa hoje – disse Marcello naquela mesma noite depois que fizemos amor. Jazia languidamente sob seu peito deixando com que meu corpo se aquietasse depois dos momentos de prazer gozados.

- Tenho a sensação de que quis dizer que estava mais barulhenta – comentei lançando um olhar ligeiramente irônico para ele.

- Não, não! – respondeu matreiro – Mais musical, minha querida – o safado disse descendo a mão curiosa pelas minhas costas numa carícia serena, trazendo-me para mais perto enquanto ria.

- Um verdadeiro safado, isto é o que você, Bergamasco – dei-lhe um tapa no ombro enquanto me ajoelhava na cama. Sentia-me feliz e talvez realmente musical. Havia passado o dia cantado e quando Marcello chegou, fiz questão de demonstrar com meu corpo o quão satisfeita estava com o rumo que a vida tomava. – Aconteceu uma coisa maravilhosa hoje.

- Além de minha presença na sua cama? – arqueou a sobrancelha com um sorriso no canto dos lábios. Ambos rimos do comentário. – O que foi que te deixou tão feliz, Fiorella?

- Ah, Marcello – me aproximei um pouco mais dele. Pouco me importando que o olhar dele varreu meu corpo pedindo por mais. – O Scala me chamou! Oh, Dio, eu vou cantar no Scala! – ri deixando-me cair sob os braços dele que me receberam num abraço forte.

- Ora, ora, ora – disse sem o menor sinal de desapontamento com o prazo de validade que nosso idílio recebia. – Finalmente! Todo italiano sabe o quão importante, quão grande é o Scala no mundo da ópera, mesmo um ignorante para esse tipo de musica como eu – e dizendo isso, ele exibiu um sorriso irônico, lembrando-se das palavras que eu havia dito logo no nosso segundo encontro. – Eu realmente espero receber um convite para a estreia. Vamos ver se você segue me convencendo que sua música é agradável.

- Ah, que disparate, garoto! – ralhei segurado o riso pela petulância em forma de gente que era Marcello Bergamasco. – Irei mandar dois convites. – suspirei magnânima, observando o quão bonito era o conjunto das feições de Marcello - Um para você e um para alguma acompanhante. Só peço que não leve qualquer uma diante de mim. Lembre-se sou eu e o Scala. - pisco e ele me puxa para um beijo leve e divertido.

- Você é uma amante trabalhosa, Fiorella – ele comentou baixo com sua voz sedutora próxima ao meu ouvido. Suas pernas se entrelaçavam às minhas e seu calor aquecia-me, completando o estado da mais pura satisfação que vivia no momento.

- Aprenda uma coisa, caro mio – disse deixando meu olhar se perder no verde dos olhos dele. – O que dá trabalho engrandece o homem. Tenha-me como algo que o engrandeceu.

Marcello riu e eu o acompanhei no riso. Não há nenhum clima melancólico de despedida entre nós. Talvez porque, no fundo, ambos não tínhamos muitas expectativas de futuro para nosso caso. O carpe diem foi vivido com intensidade, prazer, luxuria e diversão por ambos e aquilo, para mim, era libertador. Apesar de ser jovem, Marcello, sem ser um grande filosofo, e aqueles dias na Toscana me ensinaram que as coisas não têm um fim. Elas fenecem, secam, mas surgem na beleza de outras, mais belas e fortes. Minha voz e eu mesma somos provas disso. Fenecemos em Londres para ressurgir na Itália. 

Primma DonnaOnde histórias criam vida. Descubra agora