- Metade da catedral chorava, eu lhe asseguro - sussurrava-me tia Ludovica enquanto entrávamos num salão espaçoso e arejado da vila. - Eu mesma, que quase não choro, derramei algumas gotas - confessou solenemente a velha cujos os extravagantes óculos escuros cobriam-lhe os olhos azuis turvos.
- Seu julgamento é suspeitíssimo, zia - comentei com ironia enquanto me desfazia do chapéu que usara durante toda a missa, liberando meu cabelo do fardo do luto imposto.
- Garota petulante! - resmungou a velha deixando-se cair em uma poltrona e abrindo um leque para se abanar do calor da tarde que começava aumentar - Trata-me por mentirosa.
- Certamente que não - retruquei com um meio sorriso - Mas por exagerada - e dei-lhe uma piscadela carinhosa e ambas sorrimos.
O silêncio se fez entre nós deixando como som apenas o gorjear dos pássaros que pareciam seguir nas homenagens ao canto da minha nonna. Segui até um espelho na entrada do salão e deparei-me com o reflexo da mesma mulher loira de olhos muito azuis como vitrais de igreja de sempre, talvez com uma ou duas marcas de expressão revelando que a quarta década estava em sua metade e corria com certa relutância para a quinta. Mas, no fundo dos olhos de minha imagem refletida, havia um tom de novidade que a alma refletia como o brilho das asas da borboleta ao sair do casulo.
Minha reflexão foi quebrada pelos som de rodas no cascalho. Os abutres chegaram, pensei sentindo uma leve irritação serpenteando meu já combalido humor. Os convidados do funeral desceram dos elegantes veículos de par em par com doses cavalares e exageradas de piedade e saudosismo que não trariam minha avó de volta. Logo, o salão estava apinhado de corvos negros num zumzumzum pouco reverente fazendo minha paciência se ir aos poucos.
- Bianca, vou me retirar por um minuto - anunciei baixo a tal prima e sai da residência que cheirava a funeral, cigarro e vinho.
Lá fora, um dia sereno e quente cujo sol me tocou a pele com intensidade quando tomei o caminho de um arvoredo que se erguia do lado leste da propriedade. Não era bem um jardim, mas se tratava de um local onde poderia sentar-me e contemplar a calma paisagem a minha volta. Logo atrás de mim, no entanto, pude ouvir som de passos, era o muito reconhecido som de cascalho sendo pisado que, naquele momento, me irritava profundamente, afinal tudo o que não precisava era de piedade.
- Vá embora! - ordenei sem olhar para trás, sem educação, sem paciência e sem querer saber de quem se tratava. O som ainda seguiu-me indicando que o ser que me seguia era, no mínimo, obstinado - É surdo? Deixe-me!
- Não posso permitir que uma aparição divina deixe este mundo sem prostrar a minha devoção... - soou uma voz masculina grave que quase me fez parar. Quase, eu disse, mas, ainda que tentada, segui em silêncio impaciente até um banco a sombra do arvoredo, no qual me sentei. Foi quando me vi diante de um homem reconhecendo-o como a figura que me olhara na catedral. Sua aparência era bem posta: alto, ereto com um sorriso encerrado no canto dos lábios finos e um ensaio de barba preguiçosa e descuidada que ornava muito bem com toda a figura. Os olhos, devo dizer, eram de um verde único que, junto com os traços angulosos do rosto, ombros, braços e pernas, talhados por um mestre renascentista, formavam o mais indecentemente belo dos seres. O rapaz, porque alguma coisa me dizia que era mais novo, parou de caminhar há quatro passos de onde me encontrava e me degustou com o olhar em silêncio.
- Perdeu algo, bambino? - indaguei entre o incomodo daquela presença e a minha petulância natural de ser, mas mantendo um tom certa maciez na voz. Seus olhos indecentes sorriram e a parte nova de mim quis suspirar ante aquele tipo de olhar tão masculino, mas ainda lambia as feridas da traição de Bill.
- Acabo de encontrar o que buscava... - disse-me o rapaz travessamente dando um passo a mais - E, Dio santo, como sou feliz por isso!
- Agora que encontrou seja lá o que procurava, queira fazer o favor de deixar-me. - dei uma nova ordem enxotando aquele estranho delicioso com uma mão - É um dia de luto, se não percebeu... - ironizei indicando o quão era inapropriado que ele surgisse ali naqueles trajes de amante italiano.
- As circunstâncias do nosso encontro são uma benção disfarçada - respondeu-me colocando ambas as mãos nos bolsos da calça cáqui e pareceu-me um daqueles pretensiosos galãs italianos - Mas tenha a bondade de me dizer, bella mia, quem foi despachado para o outro mundo? - perguntou-me com um traço de bom humor.
- Me alegraria dizer que foi você, menino... - subi um tom minha voz demonstrando o quanto ele estava em terreno perigoso - Ser mais desrespeitoso! - resmunguei me levantado incomodada por discutir aquilo sentada - Quem pensa que é, pequeno galo? Vá! Saia antes que eu me esqueça que guardo luto e parta esta sua cara indecente! - ameacei com a mão direita erguida em fúria.
- Me desculpa se a ofendi, minha adorável aparição - disse em tom macio e levemente constrangido que certamente era utilizado para obter favores de todas as mulheres que o cercavam. - Só quis saber por quem devo chorar o descanso eterno.
- Alguém que estava muito superior a você, bambino... - retruquei com um gesto ameaçador com a mão ainda erguida - Vá embora antes que eu chame a polícia por invasão de propriedade, assédio e qualquer outro delito! - ameacei novamente aproximando-me daquele homem que exalava um aroma envolvente de colônia.
- Seu desejo é uma ordem, mia signorina - sorriu-me como um devasso e tomou a minha mão que o ameaçava com firmeza e a trouxe aos lábios, depositando ali um beijo e um roçar provocante dos pêlos do queixo. Certamente, aquele era um chamariz que ele usava com as moças que conquistava. Confesso que a sensação dos pêlos correndo minha pele me causou um certo comichão, que foi silenciado pelo meu bom senso. - Mas - prosseguiu após o beijo - não irei sumir da sua vida tão fácil, mia dulce aparição - decretou cravando em mim um olhar desconcertante e um sorriso no qual estava escrito "perigo" com letras garrafais.
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Primma Donna
ChickLitAos 45 anos, Fiorella Castromanni acumulou num curto período de tempo um número grande de perdas. Perdera o marido; o emprego como cantora lírica no Royal Ópera House; a voz e, a maior crueldade do destino, foi a perda da avó, a grande diva da ópe...