II

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Quinze meses. Cinzas, e depois negros, quinze meses de reclusão. Foi durante esse tempo que me retirei do mundo pedindo noite após noite para que a vida me fosse tirada. Estava divorciada (fato realmente aliviador), mas este processo levou de mim a música, afinal, William (crápula, infeliz e um dia, se realmente houver justiça nesse mundo, ele será brocha), após espalhar uma série de inverdades nas semanas que se seguiram a separação, me afastou em "férias remuneradas" do Royal Ópera. Ele me tirou a música e levou meus amigos consigo. Me vi sozinha diante de um abismo desconhecido, caindo em queda livre, esperando chocar-me com o chão a qualquer momento. Isso poderia se tornar uma ópera, tenho certeza que sim.

A vida é esta coisa engraçada na qual numa hora você é uma soprano reconhecida em seu país e em ascensão no cenário mundial, esposa de um manda-chuva de uma das mais reconhecidas casas de ópera do mundo. Todavia, no outro, você não é nada e as pessoas passam a fingir que você não existe por conta disto. Cessam os convites, telefonemas e visitas. Não havia, portanto, nenhum motivo para sair do meu quarto. Com os boatos espalhados pelo meu ex-marido e sua comunista de estimação sobre minha "instabilidade psiquiátrica", nenhum diretor de ópera no mundo iria me contratar novamente. Não que cantoras de ópera sejam consideradas psicologicamente normais, mas ninguém quer arriscar-se a contratar uma diva lírica louca. Sem a música, sou um ser inútil a humanidade, por isso o melhor era me afastar do mundo e viver para ouvir as minhas glórias passadas, esperando a morte me buscar.

Mesmo minha voz, companheira fiel, me abandonou naqueles dias. Com uma dor súbita, as musas do Olímpo da Ópera me roubaram a voz. Nem ao menos conseguia cantarolar minhas árias ao longo do dia. Oh, destino cruel que me teceram as velhas moiras! Cada vez que tentava emitir um som musicado era como se minhas preciosas cordas vocais, geneticamente feitas para a ópera e para o canto pelas mãos do próprio Apolo, não existissem. Mesmo falar era um exercício de tremenda dificuldade. Falava a meia voz com num susssuro sinistro. Como se estivesse destinada a morrer sem emitir um único som agonizante.

Entretanto, o destino é um rio que cursa um caminho próprio e o meu, decretaram os deuses, passava uma vez mais pela Itália. Aquela pequena bota está em mim até as entranhas. Não só pelo meu sobrenome. Bem, na verdade, totalmente pelo meu sobrenome. Tinha cinco anos quando compreendi a dimensão cósmica que é ser uma Castromanni. Foi numa noite quente do verão italiano quando ouvi minha avó, Pia, ser aclamada como Lucia di Lammermoor no La Scala. Mesmo mais velha, vovó ainda tinha a voz fresca e aveludada de uma soprano de 30 anos, capaz de notas altas e limpas; vibratos poderosos, controlados e staccatos ligeiros como se respirar para ela fosse o mais fácil do mundo. As expressões faciais perdidas de seu rosto em forma de coração, seus olhos azuis dominantes desfocados, as vestes brancas ensanguentadas e sua grandeza no palco faziam a plateia vibrar. Durante a cena da loucura de Lucia, achou-se que vovó teria uma sincope tal era seu estado de loucura no palco, mas, quando terminou e foi receber a ovação da plateia, estava tão lépida quanto uma garotinha de oito anos. Daquele dia em diante eu soube que meu destino era deixar-me guiar pela genética Castromanni para a ópera.

Agora, muitos e muitos anos mais tarde, numa tarde de domingo chuvosa, os genes Castromanni e a Itália voltaram a me contactar na figura de Ludovica, meia irmã mais nova da nonna. Queria eu que a notícia fosse mais feliz, mas tia Ludovica tinha um ar tristonho na sua voz de gralha enquanto me dizia que vovó sofrera um ataque cardíaco durante a noite e dormia para sempre.

Silêncio. Era assim que percebia o mundo sem Pia Castromanni, um mundo dolorosamente silencioso, no meu caso, ainda mais. Apesar dos 84 anos, nonna seguia com a voz forte e robusta, talvez um pouco mais matronal, mas me ganhava facilmente nos legatos por seu controle único da respiração. Não tinha doenças ou achaques e apenas tinha um defeito terrível que era o de ter uma língua tão afiada e cortante quanto seus agudos. Enquanto digeria a informação, lembrava de como me impressionou ver vovó receber aquela ovação no Scala como uma diva e depois como o mais normal dos seres, agarrar-me em seu colo e me encher de beijos carinhosos como se estivéssemos na sua casa. A bem verdade é que estávamos. O palco era o lar, o marido, o amante, o amado e o amigo de vovó tanto que, ao contrário de outras sopranos, ela nunca se despediu dele. Agora, se despedia do palco da vida e a Itália me chamava para me despedir dela. 

Primma DonnaOnde histórias criam vida. Descubra agora