VIII

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A Toscana, naquela primavera fresca, me reservava mais do que a morte de Pia Castromani, a mais querida das avós e a mais brilhante das cantoras de ópera. Cortona, sua gente e seus ares carregados de aromas e cores estavam me legando um completo rissorgimento, uma saída quase completa de um casulo escuro de autocomiseração. O sonho que havia tido com mia nonna era uma anunciação de novos tempos, uma intervenção do cosmos do bel canto, meu milagre particular, mas não foi assim que encarei as coisas, confesso. Na época, atribui o retorno da minha voz ao acaso ou coisa do gênero. Todavia, o destino é um menino obstinado com um caminho tão certo como o dos astros celestes.

Duas tardes depois da missa fúnebre, um vento que cheirava a papoulas e girassóis soprou do oeste, trazendo um pouco do aroma salgado do mar distante, uma brisa fresca que sussurrava algo que não pude distinguir. Havia retornado de um passeio pela propriedade cujos campos estavam cheios de campanulas, narcisos e papoulas, quando entrei pela cozinha, Fransceca, a cozinheira, estava as voltas com uma travessa de ervilhas frescas.

- La contessa Bergamasco está a procurando, Fiorella - disse sem tirar os olhos de sua atividade. - Ela está com zia Ludovica na na biblioteca.

- Será mais um abutre que veio chorar a morte de vovó? - murmurei contrariada. Afinal, nos últimos dias, havíamos recebido toda sorte de visitas de todos os lugares da Itália e da Europa. Francesca respondeu-me com um simples encolher dos ombros e permaneceu em silêncio. Saí da cozinha e caminhei por um corredor cheio de retratos e quadros que desembocava no hall da escadaria. Dobrando a direita, segui por um novo corredor até alcançar a biblioteca, um recinto aconchegante com grandes estantes de mogno repletas de encadernações de couro duro.

- Signoras - anunciei minha presença com um tom de simpatia falsa. - Espero não tê-la feito esperar muito, signora contessa.- disse a figura que estava de costas para mim, sentada numa poltrona vitoriana.

- Oh, no, signorina Fiorella - soou a voz encorpada da mulher, que lentamente se ergueu e virou-se para mim. Me vi diante de uma dama de pele dourada, olhos negros como a noite e cabelos curtos escuros. Tinha uma sensualidade nata, reforçada por um tubinho verde escuro Versace. - Estava tendo uma conversa agradável com Ludovica e relembrando os velhos tempos das aulas de ballet.

- Figlia mia, Carmen foi minha aluna - ouviu-se a voz de gralha de minha tia que indicou a mulher com sua bengala - Veio de Sevilha apenas para aprender comigo. Viveu conosco até cair na lábia de Roberto e tornar-se nuostra contessa.

- É um prazer conhecê-la, signorina - disse-me a dama estendendo a mão cheia de joias para me cumprimentar - Sinto muito pela morte de Pia, uma verdadeira tragédia! - seu tom era sincero com uma medida justa de piedade - Soube do ocorrido quando estava na nossa villa na Sicilia e nós viemos assim que pudemos, mia carissima.

- Mille grazzie, signora e o prazer é todo meu. - assentiu enquanto cumprimentava a tal condessa com um aperto de mão ligeiro e indiquei para que se sentasse novamente.

- Sua avó era uma amiga querida da minha família do meu marido - explicou a visitante com um ar nostálgico e um meio sorriso - E fazíamos uma boa dupla. Ela era a patrona da Sociedade Beneficente Signorelli de Ópera enquanto eu sou presidente.

- Ela deveria ser a melhor conselheira para sua organização, de certo - respondi intrigada com aquele fato novo, afinal nonna nunca houvera mencionado nada disso.

- Certamente, era. Arrecadamos milhões com as produções e recitais organizados. O mais recompensador era ver sua avó fechar cada produção deliciando a todos com uma ária acapella. Ela brilhava... - contava a condessa com um brilho nos olhos. Ela deu um suspiro e sorriu - Eu senti muito sua partida e nosso evento em sua honra perderá o brilho.

- Evento? Que evento? - inquiriu a voz curiosa de tia Ludovica, que passou todo o tempo da conversa querendo a atenção para si. - Ora, mas não sabia de nada.

- Ah, mia caríssima Ludovica - a condessa sorriu diplomaticamente para minha tia - Pia iria contar tão logo recebesse os convites prontos. Queria lhe fazer uma surpresa! Mas não houve tempo, povera.... - havia um traço de dramaticidade na voz de Carmen Bergamasco, algo que me dizia que era o suficiente sensível no trato com as irmãs Castromani. - A melhor forma de homenagear Pia, dizia ela mesma, era deixá-la cantar num palco numa noite de verão. Então, ela selecionou o melhor de seu repertório, convidou uma orquestra e um maestro de sua confiança e ela chamaria la signorina Fiorella para um ou dois duetos. Os ensaios começariam essa semana...

- Mas ela resolveu ascender ao Olimpo - murmurei perdida em pensamentos, imaginando como teria sido cantar com vovó em diante de uma plateia. Um pequeno silêncio se instalou no recinto como que em respeito a menção daquela morte.

- Lamentavelmente - assentiu a mulher fazendo um sinal da cruz - Todavia, se me permite dizer a partida de Pia não anula a homenagem. - havia um que sugestivo na condessa como se guiasse a conversa desde o início até aquele ponto.

- Entendo onde quer chegar, Carmen! - guinchou a velha tia dando um soco no chão com sua bengala, quebrando qualquer tensão com sua dramaticidade - Oh, Fiorella, você deve aceitar! Tem que aceitar! - disse-me ela com um brilho nos olhos - Imagina que lindo seria: você homenageando a Pia no Signorelli, aquele palco onde vários Castromanis estrearam inclusive a própria Pia. Oh, oh, seria...divino! - ela uniu as mãos quase numa prece - Já posso ver o cenário com velhas fotos dela esmaecidas espalhadas pelo palco, arranjos de rosas toscanas com lírios brancos como ela gostava. O Signorelli todo iluminado, toda Itália se acotovelando por um ingresso. Mulheres com suas melhores joias e os signores em elegantes smokings. O afinar da orquestra e o zumbido que antecede o espetáculo - zia descrevia a cena em cores vibrantes e eu as imaginava. A condessa sorria tal qual uma raposa que havia conquistado um aliado para o bote. - E logo, surge você em todo seu esplendor vestida com um branco diáfano, um vestido que remeta a Lúcia de Lammemor. Oh, bambina, você tem que aceitar!

- É apenas uma ideia... - Carmen diz com uma pretensa humildade e uma ligeira sombra de sotaque espanhol - Você é livre para não aceitar, querida. Não gostaria de ver uma homenagem sendo feita no Scala sem nenhuma gota de Cortona e sem nada do sangue Castromani - completou com um suspiro melancólico.

Uma soprano costuma ser uma pessoa vaidosa e, como todo ser vaidoso, tem suas pequenas fraquezas. Confesso que, ainda agora, não estou imune a este traço genético inerente a minha carreira. Tenho em mim o pecado da vaidade e representar o repertório de minha avó certamente era tentador a minha vaidade. Em outra fase da minha vida, teria aceitado antes de mesmo da condessa propor. Todavia, me sentia tão instável com aquela voz nova que relutei. Os medos velhos sopravam em meu ouvido enquanto uma vozinha longe instigava-me ao palco. Guardei silêncio enquanto medo e vaidade duelavam com ferocidade em mim quando a voz interna ficou mais clara e sussurrou imperativa e decisiva: Canta, figlia mia! Canta!

Primma DonnaOnde histórias criam vida. Descubra agora