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Uma atmosfera especial emana do palco do Teatro Signorelli. Uma aura musicada, dramática e dançante como se uma das musas vivesse ali escondida, saltitando entre os camarotes e as cadeiras. Tal era a atmosfera mágica que ali habitava que poucas interrupções foram feitas durante o ensaio, o que sempre é muito difícil entre diferentes artistas. A orquestra, o coro e eu íamos nos afinando, convergindo nossos talentos em honra de minha avó. Pela manhã, tivemos como companheiros Verdi, Puccini e Donizetti, que faziam toda gente do teatro cantarolar seus heróis italianos da ópera.

- Uma soprano cantado Carmen...Irei gostar de ver sua Habanera, signorina - comentou o maestro durante o almoço num bistrô ao lado do teatro. Havia um certo tom de descrença no homem como se eu fosse uma iniciante que lhe causaria inquietação.

- Será um prazer deslumbrá-lo como a primeira Carmen loira da história, signore maestro - e lancei um sorriso adulador enquanto guardava todos meus brios uma pequena explosão para Carmen no palco.

Apesar de nunca ter executado a cigana de Bizet no palco, Carmen é minha personagem favorita da ópera pelo envolvimento e certa dose malévola que a figura permite. "É uma devassa", dizia vovó depois de cantar a Habanera aos familiares numa noite. Assim como eu, ela nunca interpretara Carmen nos palcos, mas sempre que podia dava vida a ela em recitais e eventos.

Após alguns acertos no tom e no coro, os primeiros acordes violentos da Habanera foram executados e senti um pequeno sorriso travesso atravessar-me os lábios conforme o coro se deslumbrava com a figura de Carmen. Antes que pudesse começar a cantar, surgiram duas figuras inesperadas na plateia: a condessa Bergamasco vinha de braços dados com o meu perseguidor dando o mais maternal dos olhares. Ah, então, ele era um Bergamasco, pensei enquanto sentia a cigana se apossar de mim. Os dois se sentaram na terceira fileira enquanto eu caminhava pelo palco com o olhar fixo no moleque da condessa. Vinha com um sorriso curioso e algo de sedutor nos lábios que me irritou profundamente fazendo Carmen arder. Logo, ali estava minha deixa para começar a ser Carmen e resolvi dar uma pequena lição sobre as artes do amor ao moleque.

- Quand je vous aimerai? - minha Carmen soou potente e algo irônica - Ma foi, je ne sais pas! - encolhi ligeiramente os ombros como se a mim não me tocasse fazê-lo, mas fui gentil e cantar as possibilidades - Peut-être jamais, peut-être demain.- a cigana em mim era vaga, distante enquanto flanava pelo palco - Mais pas aujourd'hui, c'est certain! - decretei olhando para o rapaz.

A orquestra seguiu os acordes e Carmen foi cantando sua filosofia sobre o que é o amor: um pássaro rebelde, uma criança cigana, algo cuja a vontade é livre e voluntariosa, que quando se quer dominar, não se consegue e, quando se quer detê-lo, ele se instala. Ah, lógica sem lei das coisas do amor nunca foi tão bem explicada quanto por Carmen e, naquele instante, ia retirando os véus deste mistério para aquele menino, o Bergamasco, que me seguia com os olhos devoradores.

- Si tu ne m'aimes pas, si tu ne m'aimes pas, je t'aime. - cantamos eu e Carmen já ao final da ária e o coro gritou para que tomasse cuidado aquele que se aventurasse nas garras do amor. - Mais si je t'aime, si je t'aime. Prend garde à toi! - finalizei com uma nota alta, potente de aviso.

- Bravo! Bravo! - ouvia a condessa gritar enquanto ela liderava os aplausos dos demais presentes. Com um sorriso ainda da cigana, agradeci com uma reverência elegante.

- Gostou do que viu, meu maestro? - perguntei com um tom orgulhoso ao homem que estava logo a minha frente.

- Eu cairia de amores aqui mesmo, se não fosse casado - respondeu o homem em tom sincero e com uma ligeira nota de assombro na expressão.

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