Os dias se passavam entre ensaios pesados no Signorelli. As tardes, eu passava na villa. Por vezes, aproveitava para caminhar entre as vinhas cujo aroma envolvente das uvas quase me deixava zonza. Ou senão, ia ao estúdio e observava tia Ludovica ensaiar suas bailarinas marcando o tempo com sua fiel bengala. Mas, na maioria das vezes, ficava a cantarolar com Francesca enquanto sovávamos o pão da tarde na cozinha. Era uma terapia poder usar as mãos para alimentar, dizia Francesca com o rosto redondo e gentil salpicado de farinha e as mãos sempre ocupadas a cozinhar. E eu tinha que concordar com ela. Sou da opinião de que a sensação de fazer algo com as mãos era a segunda melhor depois de cantar.
Naquela tarde, um sol laranja já seguia a se esconder no horizonte e estávamos a volta com uma massa que serviriámos no jantar quando tia Ludovica, a quem a cozinha lhe dava certa ojeriza, entrou no lugar como um tufão quase sem ajuda de sua bengala. Os tecidos de sua túnica faziam-na parecer uma aparição, pois ainda se esvoaçavam mesmo com ela parada.
- O apocalipse só pode estar as portas! - bravateou com os braços estendidos ao ar como se fosse um pregador louco. Juro que pude ouvir uma orquestra em notas fortes logo após seus dizeres.
- Santo Deus, zia! - Francesca fez um sinal da cruz e beijou uma medalhinha de ouro de Santa Margherita que trazia como pingente - O que aconteceu? - suspirou antes que a tia pudesse falar algo - Ai, ceus, que a velha ficou louca!
- Não estou louca, menina! - ralhou a velha pondo um olhar nervoso em Francesca que levava a mãos as cadeiras - Oh, queria estar vendo coisas, mas estou em perfeito estado, crianças! - Ludovica caminhou até uma cadeira que ficava perto da mesa onde trabalhávamos e se derrubou ali - Ah, vocês nunca adivinhariam quem ousou botar os pés na vila! - falava minha tia agitando as mãos como boa italiana que era. Havia uma nota de indignação tão grande nela que achei que tivesse perto de uma apoplexia - Já estava na sala quando cheguei. Tinha uma expressão demoníaca de arrependimento naquela cara macilenta e meio cinzenta! Ah, vocês não adivinharão! - repetiu negando com a cabeça e logo se levantou novamente. Caminhou umas quantas vezes pela cozinha enquanto eu e minha prima nos olhavámos tentando entender o que diabos acontecera com a velha. De repente, ela parou de costas para ambas e sua respiração ia agitada. O tom da velha era quase sombrio e nos deixou em suspenso. - Seu ex-marido está nesta casa, Fiorella - anunciou ela virando-se de chofre.
Bill em Cortona? O que aquele canalha estava fazendo ali?, pensava meu leão interior acordou de um pulo e caminhava de um lado ao outro. Respirei fundo umas quantas vezes enquanto controlava-me para não sair em fúria e atirar-me no pescoço dele para matá-lo. O que ele queria?, perguntava-me enquanto seguia até a sala pisando o mais forte o que pude.
O homem ali parado pouco parecia com o robusto e charmoso Wiliam Chambers com quem havia me casado uma década antes. Os cabelos grisalhos careciam de corte e de uma boa lavagem, os olhos vinham rodeados por olheiras, a pele estava num tom ocre e ficava claro que havia perdido peso, pois suas roupas pareciam frouxas como se fossem muitos números maior que seu portador. Era uma sombra do homem que havia conhecido, um fantasma que viera assombrar minha nova existência.
- O que quer? - inquiri cortante caminhando ao redor dele como um leão fazia com sua presa antes de devorá-la.
- Você - respondeu-me com pouca firmeza. A voz parecia quase senil, talvez um subterfurgio para me cortar o coração. Seus olhos cinzas me encararam com as cinzas incandescentes de paixão brilhando em algum lugar. O que fazer diante daquela cena patética? Gargalhei alto, um riso forte, irônico e que certamente ecoou pela casa.
- Por fim, a senilidade chegou ao poderoso William Chambers! - comentei durante o riso. - Oh, céus, iria bem numa carreira mais cômica como a de palhaço, meu querido! - suspirei enquanto passar a caminhar a passo sereno pela sala - A mim? Por dez anos, fui sua! Teve sua chance .
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Primma Donna
ChickLitAos 45 anos, Fiorella Castromanni acumulou num curto período de tempo um número grande de perdas. Perdera o marido; o emprego como cantora lírica no Royal Ópera House; a voz e, a maior crueldade do destino, foi a perda da avó, a grande diva da ópe...