VI

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A Catedral de Santa Maria está no coração de Cortona na Piazza del Duomo. Sua fachada é rústica de pedra e sem nenhum adorno, mas, no seu interior, os tons de dourado, marrom, verde dão vida a igreja juntamente com seus arcos e pinturas sacras. Naquele dia, no entanto, não prestara atenção em nenhum detalhe arquitetônico. Nem havia ao menos prestado atenção se aquele vestido preto que escolhera para a ocasião era muito indecente para uma igreja. Tudo o que pensava era em como encararia aquelas pessoas e cantaria a Ave Maria de Vavilov; que vovó poderia estar comigo e seria um agradável dueto. No entanto, ela estava ali. Diante de mim, o corpo sem vida de Pia Castromani repousava em um esquife, sua última morada terrena ainda era numa espécie de palco, o altar da igreja.

Desde que pisara naquele solo sagrado, tremia indecentemente e mal liguei para as pessoas a minha volta naquela onda de compaixão que acomete a todos durante funerais. Meu estômago era uma revoada de borboletas indo de um lado a outro a me atormentar terrivelmente como se fosse uma mocinha em um recital escolar e não uma mulher de quarenta e poucos anos que tinha mais de vinte anos de carreira nos palcos.

- Meus amigos - soou a voz do padre Morello em dado momento da missa e senti que seus olhos do Mediterrâneo me encaravam - Pia Castromani era uma mulher próxima de Deus. - o homem fez uma pausa contemplativa e arrastou-me ainda mais em ansiedade - Por anos e anos, cada vez que ela abria a boca para fazer o que melhor fazia e nos encantou com sua voz, ela se elevava até a sala do trono do Senhor. - o sacerdote ergueu seu olhar para o teto da igreja, mas não havia nada além de um afresco de alguma cena bíblica. Morello não se demorou muito nesta cena dramática, logo voltou ao seu discurso enquanto eu rezava para tudo acabar logo - Mas hoje, usaremos uma outra voz para elevar a memória de nossa irmã aos Céus. - Ele fez uma pausa para fazer suspense tanto que tive que levantar os olhos e reparar que ainda me encarava - Aqui está a única neta que Pia deixou - disse apontando a minha figura logo na primeia fileira do templo - e a signorina Fiorella Castromani herdou da avó muito mais que os olhos azuis. A voz também tem sido a sua ferramenta para acessar o divino bem como sua avó fez durante a vida. Hoje, ela emprestará sua voz em honra da memória da nossa Pia - e encerrando seu discurso, ele fez sinal para que eu me levantasse. Tremi novamente, mas ergui-me e senti os olhos todos em mim e um pequeno e suave burburinho percorreu a igreja enquanto caminhava em direção ao altar. Diante do esquife de minha avó, fiz uma ligeira prece e uma reverência.

Ao ficar de frente a plateia, reparei que a catedral estava cheia de uma massa negra, de pares e pares de olhos voltados para mim. Deveria falar algo? Não, não estava ali para isso. Olhei para a galeria, que ficava no alto do templo, diante de mim, e não vi apenas um pianista. Eis que uma pequena orquestra se espremia num curto espaço e seu maestro me fitava com uma aparente nota de pânico nas sobrancelhas. Afinal, era a primeira vez que nos viámos e nunca havíamos ensaiado. Movi minha cabeça e dei o sinal. Que Nossa Senhora das Sopranos me ajudasse!

As primeiras notas melancólicas dos cellos e violinos soaram pela catedral e eu apenas me dignei a fechar os olhos e deixar cada célula do meu ser trabalhar. Na minha deixa, quando orquestra suavizou sua música, a voz saiu e ecoou graciosa, afinada, pura como o ouro daquele altar. Enquanto deixava-me levar pela música, libertando-me do medo, o ar mudou e fui enlevada enquanto Maria recebia louvor de meus lábios. Ah, que agudos perfeitos! Não era minha voz ou era? Que flexível estava! Aquele nem era meu tom normal e o seguia com propriedade. A cada Ave Maria, um peso era tirado de mim como se aquele canto fosse minha oração e Maria em pessoa tratasse de aliviar-me.

Ao fim daquela ária, era outra como se eu estivesse em outra existência junto como minha voz. Permaneci com os olhos fechados até o último acorde da orquestra. Abri os olhos lentamente como se fosse a primeira vez que o fizesse na vida e talvez o era naquela nova existência na qual era nada mais do que uma recém-nascida. A luz do sol irradiava no fundo da catedral e atraiu-me olhar. Era impressão minha ou tinha uma figura parada em meio ao halo de luz diante da porta do templo? Parecia ser um homem bem alto que me encarava desde o fundo da igreja. Não pude ver seu rosto e, cheguei a pensar, naquele momento, que aquele era algum mensageiro, um anjo que viera anunciar-me a nova vida que me fora dada pela música. Ele deu dois passos para dentro do templo e pude lhe ver o rosto: era humano, um humano moreno de sol de cabelo negro como a morte. Olhava-me como se fosse a encarnação do extraordinário, mesmo longe pude ver que olhava-me mesmo quando me desloquei em silêncio e retornei ao meu lugar. 

Primma DonnaOnde histórias criam vida. Descubra agora