JEONGGUK: Anjo

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Aquela dor me consumia, os momentos horríveis repetiam em minha cabeça, eu só queria esquecer tudo aquilo, se eu pudesse arriscaria todas as minhas lembranças, até mesmo o nome que meus pais me deram para acordar de madrugada e não lembrar de mais nada.

Alguns buscam pela estética perfeita. Será que eu era visto como um garoto bonito quando ele decidiu fazer aquilo? Quanto dinheiro a nobreza investiu no trabalho das clínicas? E quantas cirurgias plásticas eu teria de fazer para concertar os meus problemas? Quem me dera se a ciência fosse de todo impecável, eu não teria mais de sofrer com os flashbacks e o nojo que eu passo a sentir de mim mesmo.

Eu me olho no espelho e vejo apenas um miserável, pobre, sujo, importunado. Sem motivo nenhum para estar aqui; dando motivos para os outros me fazerem estar onde e como quisessem.

Eu tenho apenas quinze, recém-aniversariado e que vantagens isso me traz? Nenhuma. Que diferença fazem os números para pessoas que nunca aprenderam a contar nem dinheiro? Eu era o mais novo problemática naquela cidade cheia de pessoas bizarras.

Viver da rua, porém, me fez ver muito mais do que eu queria, devia, sabia; e aprendia coisas que ninguém ensina.

Depois que me mostraram o que escondiam as vielas eu nunca mais tive medo dos monstros que viviam debaixo da minha cama.

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O rapaz acariciava-me a pele do braço. Gerava certo desconforto, mas eu tentei manter-me apenas imóvel. As suas mãos envolviam-me a cintura e meu estômago naquele momento embrulhava-se aos socos.

Tentei afastar-me, sem quaisquer movimentos bruscos, apenas crendo que a boa vontade viria junto com o senso dos limites. Infelizmente não funcionava assim com o rapaz dos extremos. — Era certeza que estava sob o efeito do pó.

Ele agarrou-me os pulsos com força e simplesmente passou a manipular meus movimentos. Era simples para ele, bem mais velho, bem mais alto, bem mais forte, fazia de mim quase um brinquedo.

Lançou-me contra a parede e sem demais avisos a mão pesada circulava meu corpo e arrancava minhas vestes sem permissão.

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Minha cabeça doía, e não só ela. Aquela sensação consumia tudo o que eu tinha. Não suportei as lágrimas que acabaram por escorrer e deteriorava-me os olhos chorar à cada meia hora. O que há de errado com você, Jeongguk? Não choravas feito uma criança assim antes, porque, de fato, nunca foi criança. Roubaram-te o dinheiro e a infância, ensinando-o a consumir do ilícito.

E só com um monólogo frouxo, retórico e bem curto eu podia perceber o quanto o pessimismo me consumia.

Eu lembro, repentino, de quando eu ando pelas ruas. A maioria das pessoas encaram a face emburrada que eu levo e eu não tenho como saber que tipo de coisas estão dizendo sobre mim, mentalmente. Eu continuo andando pelas ruas, com a mesma cara — talvez um pouco mais sensível agora — e quem me vê continuará pensando as mesmas coisas, eles nunca irão saber, nem querer, sobre o que aconteceu ou deixou de acontecer naquela noite. Eu continuo sendo um em vários na imensidão das ruas. Aquele era definitivamente o meu lar.

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Desoladamente eu chorava e implorava para que parasse, mas era o esforço mais inútil no momento.

Com uma das mãos tapava minha boca tagarela de pavor e com a outra segurava-me ambos os pulsos atrás das costas, enquanto continuava o seu ato impiedoso com cada vez mais audácia.

A pior das sensações que meu corpo podia suportar, naquele momento eu tentava livrar minha cabeça de tudo, mas ela insistia em focar na desgraça alheia que ocorria.

Já não tinha mais voz, não tinha mais espaço para boas lembranças, não tinha nada além de uma dor que percorria todo o meu corpo — física e mental — e um pranto que parecia nunca mais terminar.

Ao fim ele jogou-me ao chão e deixou o recinto, deixou-me jogado a chorar por horas. Não tinha força ou coragem para levantar o rosto, muito menos o corpo.

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Passei a ponta dos dedos tateando a madeira velha do velho criado, abri a gaveta e meus dedos foram de encontro ao ferro. O objeto pesado foi arrastado até que visível aos olhos e eu o trouxe até mim para analisá-lo. Eu não lembro-me muito bem como eu consegui aquilo, não me lembro de nada bem, com exceção da noite dos horrores. Uma arma.

Cuidadosamente peguei as balas e preenchi os espaços vazios do revólver que vestia o silenciador que preparei na falta do que fazer naquele colégio tão entediante para caso se um dia eu precisasse. Agradeço ao professor de geografia e ao de matemática pelas aulas ruins.

Ouvi um barulho do lado de fora, o que fez-me imediatamente virar para a porta e esconder a arma atrás das costas, levemente tentando introduzí-la entre minha pele e o cós da calça, sem que o movimento fosse notado. Eu tinha medo de quem poderia ser, mas felizmente, quando abriu a porta, era apenas Taehyung. Ele e aquela cara de sonso que tem quando está preocupado e com medo de agir.

Cumprimentou-me e eu correspondi. Ficou a me encarar por tempos sem dizer nada, nem motivo, nem propósito. Nada.

"Por que você veio?" Tive a necessidade de cortar o silêncio e questionar-no.

"Eu estava preocupado, precisava vê-lo."

"... Melhor agora?" Suspirei repentinamente pelo choro recente, aquele estúpido choro que me fazia parecer várias coisas pejorativas sinônimas de infantil e idiota.

"Não exatamente." Ele parecia entristecer à medida que pronunciava. "Meu anjo, o que houve?"

Encarava-me bem nos olhos, gerando certo desconforto. Desviei o olhar.

"Não me chama assim. Nunca mais."

Desfecho.Onde histórias criam vida. Descubra agora