NOVE: Vidro

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Mais um dia estranho. Só a entrada no local já me fazia sentir o quão terrível aquilo poderia ser. O mais baixo servira como um gato preto, cruzando meu caminho e anunciando-me uma tragédia.

Eu me sentia extremamente em desvantagem sempre que minha rotina era recalculada sem aviso prévio. Hoje seria um dia desvantajoso. Alguma conturbação dentro do colégio fez com que fosse necessário que ambas as classes do primeiro ano tivessem as aulas numa única sala.

Aquele lugar enorme e o dobro de corpos que eu estava acostumado a lidar. Rostos desconhecidos e aquele sentimento estranho puxando-me a barra da calça.

Ignorei. Escolhi um lugar qualquer, escondi os fones de ouvido entre as roupas e o cabelo e ouvi as mesmas músicas que ouço há um mês. Depois disso passei a não reparar em nada nem ninguém.

Certo tempo depois vi sentar ao meu lado Seokjin, com um sorriso bem fraco de vergonha. Era provavelmente a única pessoa qual poderia deixar meu dia parcialmente mais alegre com toda a sua infantilidade e simploriedade.

Tentávamos ambos gerar alguma conversa que fizesse nossas cabeças transportarem pra algum outro lugar bonito. Londres, Lisboa, Hong Kong, Estocolmo. Qualquer lugar.

Eu não tinha dificuldade nenhuma em insistir nisso, a dificuldade vinha do mais novo, a personificação da timidez. Eu via em seu rosto a vontade de falar, mas era como se houvesse um monstro grande — um monstro não, um rapaz, assim ele não teria medo — um rapaz grande que limitasse suas palavras.

"Você tem vergonha de conversar comigo?" Perguntei não pela real curiosidade, mas pela resposta que me aguardava.

"Na verdade, eu tenho dificuldade para interagir com pessoas que eu admiro."

Passei a odiar toda a sua dificuldade e timidez, toda vez que ele falava era bonito, era como uma criança, mas seu palavreado esbanjava educação.

"Você me admira? Não tenho nada de admirável." Murmurei, um tanto desacreditado do que ouvia.

"Não é exatamente admirar, apenas o acho, de ver, uma pessoa interessante." Dava explicações do que achava necessário, meio perdido no monte de palavras, sem saber o que usar com exatidão.

Como todo ser há de ter seu ego, o meu, por hora, inflava.

Era agonizante quando a conversa tinha seu fim e nenhum dos dois se pronunciava. Era um silêncio horrível no meio de todo o barulho. Continuávamos sempre a persistir, mas cheguei a crer que aquilo era impossível.

Mas, para minha sorte, acabamos num assunto agradável para ambos o que fez o menor empolgado e passou o resto da manhã tagarelando. Não que eu achasse isso ruim, era ótimo. Era como um animal silvestre: no começo ele estranha e recusa, mas depois aceita e acolhe-se em suas carícias.

"Eu sei que não devia perguntar sobre, mas qual o motivo das cicatrizes?" Quando eu vi, começava a tentar aprofundar-me enquanto acompanhava-o até o caminho para casa.

"Bem..." Era notável a dificuldade e o desconforto, o que causou-me um breve arrependimento. "Se eu disser tristeza é muito vago?"

"Sim. Você não sabe me dizer do que é feita a sua tristeza?" Novamente questionando, ajudando-o a pronunciar as primeiras palavras de uma longa história.

Ele pensou, pensou bastante, e concluiu: "Eu sempre achei que era capaz de dizer o que causa a tristeza em mim, mas isso é bem mais difícil. Talvez eu nunca saiba todos os motivos, entende? Parcela de um, parcela de outro, e quando vê é um grande amontoado de mágoas."

"Eu consigo entender."

Respondi em poucas palavras, não por desinteresse ou por falta delas, mas porque, por dentro, havia muito mais. Fez-me pensar muito mais que dizer. E fazia-me entender como Taehyung sentia-se quando eu falava, era tudo bonito demais pra algo tão ruim. É como o uso do diminutivo: coloca-o em coisas que, ao normal, parecem amedrontadoras demais.

Seokjin era quase feito de vidro. Ligeiramente arranhado, extremamente trincado. As pessoas o magoavam com constância e por estar assim, tão perto, meu lado familiar dizia que eu deveria cuidá-lo. Era bobagem, porém; não sabia cuidar nem de mim mesmo, quem dirá de algo tão frágil assim — frágil como o menino de vidro.

"Você vai na festa dos meninos conosco, não vai? Está quase no dia." Ele anunciou espontâneo ao nada.

Para ser bem sincero comigo mesmo: eu não iria, mas a sua intonação cativava-me um convite doce. Então minhas ideias mudaram no rolar dos segundos.

"Claro! Claro que eu vou." Sorri meio fraco.

Ele sorriu de volta e então afastou-se um pouco ao acelerar o passo, em seguida parando em minha frente num pulo bem rasteiro com suas botas forradas que faziam um som diferente dos meus simples calçados gastos na sola.

Eu o abracei com força na despedida, fiquei ali por longos instantes; mais parecia que não iria vê-lo nenhuma outra vez. Nem parecia que o veria a semana toda.

Vi-o afastar, ele caminhava para o lado divergente de quando eu o via, de longe, partir, o que fez-me questionar e simultaneamente querer ir atrás dele. Meus pés caminhavam sozinho, vagarosa, mas cautelosamente para que não percebesse minha presença.

Ele percorria um caminho comprido, o que fazia-me pensar que talvez só fosse ensinado daquele e que não soubesse andar pela cidade, mas era admirável que sabia chegar onde queria. Parecia ser o único lugar a qual sabia-se o trajeto perfeitamente.

Ele empurrou os portões delicadamente, cumprimentou os coveiros com algo que parecia um "olá" e um sorriso e passou a caminhar em um padrão estranho.

Um cemitério. Buscando por uma lápide. Mais uma coisa que ele aparentava saber de cor. Eu não entrei, obviamente, mas fiquei a observá-lo de longe abaixado próximo a uma das estacas de pedra no chão, como se conversasse com ela.

Não satisfeito, meu instinto de curiosidade esperou até que ele saísse, decorou o lugar onde ele estava e então fez-me caminhar até lá. Não tardei a encontrar, o que denunciava claramente era uma foto de Seokjin ainda criança, acompanhado de uma moça mais velha.

Havia flores a morrer, próximas à foto, e um bilhete que dizia:


EU TE AMO, MAMÃE


Um sentimento de angústia subia-me pela garganta, apossando-se de todo o meu corpo. Procurar pelos motivos das coisas, às vezes, não é tão bom quanto descobri-los.

Inalei grande quantia daquele ar pesado do ambiente mórbido e então passei a retirar-me em passos lentos, finalmente em direção a casa. Não veria Taehyung, lidaria com alguns roxos depois, naquele momento nada parecia importar.

Quanto mais eu me distanciava daquilo, mais eu me sentia aos poucos entregue à sanidade novamente. Coisa demais para poucos meses, me fazia agir feito um idiota.

Algo mais estava errado naquela cidade além de mim: o clima. Precisei estender as palmas da mão e olhar para o céu para ter a certeza de que o que eu sentira foram gotinhas de água que perderam-se das nuvens. E realmente era, minha dúvida foi sanada quando mais delas surgiam.

Fazia tempo que não via chover, nem fiz qualquer questão. Chuva sempre me pareceu algo triste demais. É fria, devastadora e cai como lágrimas no rosto.

Mas, eu conheço alguém que gostasse. Já me disse uma porção de baboseiras sobre a chuva, mas eu nunca ouvi bem.

Por falar no diabo, eu o vi, mesmo de longe, sentado na calçada na frente de casa enquanto a chuva o encharcava por completo e ele pouco se importava.

Ao perceber minha presença levantou-se, tirou o cabelo do rosto e tentou ajeitar as roupas impregnadas no corpo estranhamente magro. Os olhos conhecidos me encaravam e finalmente os lábios cheios tomaram coragem para dizer:

"Eu preciso falar com você."

E enquanto isso a chuva deixava-me também como ele, cada vez mais repleto d'agua fria.



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