YOONGI: Abandonado

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Outra discussão. O desentendimento reinava aquela casa, havia sempre um motivo que me fizesse culpado e desonrado. Eu sentia como se não pudesse mais simplesmente concordar com a cabeça e dar-lhes razão. Eu estava cansado de ter de viver naquela situação, aquele ambiente pecaminoso e a áurea tóxica.

Eu ouvia de um lado minha mãe lamentando o filho que tinha e do outro o meu pai contestando minha existência. Àquele ponto parecia que eles chegaram ao limite da resistência, perderam todas as esperanças que tinham em mim. Eu não me vestia como eles queriam, eu não seguia o futuro que eles queriam, eu não pensava na faculdade que eles queriam, eu não levava pra casa os méritos que eles queriam. Agora eu era apenas um adolescente sem salvações.

O sonho de toda rapariga na época jovial de minha mãe era ter um filho, o sonho de toda mãe como a minha era um primogênito perfeito. Mas, infelizmente eu fiz as coisas darem errado. Sem chances de contestar, de opinar, de participar, sem chances de nada.

Eu nunca perdi as chances que a vida me deu, eu simplesmente nunca as tive; foram completamente arrancadas da minha realidade antes mesmo de eu ter capacidade para pensar.

Só depois de quinze anos eles puderam sentir o peso de colocar um filho do mundo e o arrependimento de atos tolos e irreversíveis.

Ouvia daquelas bocas palavras grotescas em tom alto. A vizinhança inteira sabia que eu era a pior coisa que já aconteceu. Você não faz nada, Yoongi. Você não é bonito, Yoongi. Você não tem educação, Yoongi. Você não merecia viver. E eu não conseguia ficar em silêncio, eu retrucava aquelas palavras propositalmente maldosas, mas eu não conseguia dizer nada que os afetasse como me afetavam. Eles tentavam me destruir e realmente conseguiam.

Quem imaginaria que as pessoas mais horríveis e ofensivas que eu conheço seriam as duas pessoas que me botaram no mundo e me "cuidaram" por anos. Pessoas quais deveriam ser meus heróis e minha expectativa para a vida. Seria até cômico se não fosse trágico. Era surreal, chegava a rir de nervoso.

Meu pai nunca mandou-me ao inferno porque era o próprio diabo. Sentou-me a mão na cara até que eu caísse no chão, mas não era suficiente, ele precisava levar-me ao abismo.

Fizeram-se prantos do meu nervosismo. Eu gritava de propósito enquanto chorava contra a minha vontade. Não importava o que eu fizesse naquele momento, eles continuavam me encarando e me agredindo constantemente.

Eu tentei levantar-me do chão, sequei os olhos com rancor e corri até o quarto. Não pensei duas vezes antes de pegar as malas e enchê-las de tudo que me era essencial. Voltei a encará-los só para que eu pudesse dizer:

— Vocês queriam que eu não existisse? Pois bem, a partir de hoje considerem-me morto, porque vocês nunca mais virão a minha cara.

Eu empurrei-os, sem mais, e sai pela porta, corri para o mais longe possível, mas eu não ia para lugar nenhum. Virando algumas esquinas o esforço para correr acabou. O corpo inteiro doía, eu arrastava minhas coisas pelo chão e o choro nunca cessava.


Você não deveria existir.


Eu não tinha mais casa, eu não tinha mais nada, além de um peso enorme. Por todas as horas vagando e jogando-me aos cantos da cidade, tudo o que eu podia pensar era uma maneira de deixar aquela situação ridícula para sempre. De esquecer completamente minhas memórias ruins — e também as boas.

No centro da cidade, por incrível que pareça, há um viaduto, onde no topo podem vagar as pessoas. Eu deixei minhas coisas encostarem-se ao parapeito de ferro e subi em uma das pequenas pilastras de cimento. O vento fraco, com seus leves dígitos, bagunçavam meus cabelos, tirando-os do rosto. Revelando o rosto completamente inchado de choro e os olhos roxos do pai. Eu olhei para baixo e vi os carros passando de longe. Eu fechei meus olhos e gradativamente sentia meu corpo enfraquecer.

Pouco tempo depois eu ouvi gritarem o meu nome e eu queria que fosse tarde o suficiente para eu apenas encarar o proprietário e despedir-me. Mas fora ágil, atravessou a rua sem cuidado e apanhou-me pela cintura, derrubando-me na calçada.

"O que deu em você? O que você ia fazer?" O rosto familiar expressava desespero, coisa que nunca imaginei ver vindo dele.

Namjoon gritava comigo, a sua voz era forte, seu rosto era intimidador. E o meu coração sensibilizado doía a cada palavra. Ele parou, repentinamente, e depois voltou com a voz suave — rouca, mas suave.

"... O que aconteceu com o seu rosto? O que aconteceu com você? Estava chorando?"

Eu queria esconder meu rosto em qualquer buraco grande e escuro o suficiente para minha cabeça caber e eu ficar totalmente cego do mundo.

Sentia-me intruso quando abrigado na casa do mais velho. A família perfeitamente construída, o lugar mais pacífico e cheio de afeto que eu já tinha visto. Era um choque extremamente grande, eu estava perdido em um lugar maravilhoso onde serviam-me comida, questionavam-me sobre o passar do dia e desejavam-me boa noite.

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Ele sentou-me numa cadeira e começou a mexer nos meus fios castanhos de cabelo. Até onde eu sabia, ele não entendia sobre cortar e tingir, mas continuava a fazer e isso certamente me assustava. Eu não queria parecer estranho, mas ele dizia que eu precisava esquecer o velho Yoongi.

Quando eu pude finalmente olhar, vi refletir no espelho minha pele pálida, o rosto geneticamente magro e as madeixas rosadas. Deixava-me cada vez mais pálido e de expressão delicada, mas isso não parecia problema ao primeiro momento.

Era ainda de estranheza para mim tudo completamente novo. A morada, a escola, as pessoas, eu mesmo. O coração ainda era frágil das mágoas não superadas. Eu tentava seguir em frente daquela forma.

Estava tudo bem? Talvez não como devesse, como eu esperava. Garotos mais velhos, de cabeça atrofiada, mexiam comigo e como irritavam. Comentários infames sobre tudo o que os seus olhos alcançavam de mim. O cabelo era realmente atrativo. Propenso a todo tipo de adjetivo pejorativo, exposto a todo tipo de comparação. A pressão sufocante.

Eu chegava a casa – que não era minha – largava as coisas sem delicadeza e avançava no maior. Eu empurrava-lhe pelos ombros. Minha voz era alta, gritava tudo o que tinha que calar durante semanas.

"Olha o que você fez comigo! Você acabou com a minha vida, Kim Namjoon!"

Eu passei orgulhosos meses praticamente a dividir a casa com ele, mas sequer olhando diretamente no seu rosto. Eu era outra vez apenas eu, abandonado pelo mundo.

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Eu não lhe culpo por tudo isso, aliás, lhe agradeço. Graças a tudo aquilo hoje eu posso ser assim: tão ausente de emoção. Sentir pouco, demonstrar menos. Hoje eu não vejo mais problema nenhum em ser ninguém. Apenas sigo a vida esperando pelo meu dia.

Eu aprendi a gostar do rosa.

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