OITO

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  Eu corri antes que sua queda atingisse o chão, enterrando seu rosto em um abraço, para que ele não visse enquanto eu empurrava para longe os pedaços do corpo espalhados no chão do quarto

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  Eu corri antes que sua queda atingisse o chão, enterrando seu rosto em um abraço, para que ele não visse enquanto eu empurrava para longe os pedaços do corpo espalhados no chão do quarto. O cheiro preso no cômodo velho era tão forte que eu podia jurar senti-lo na pele.

  - Thomás, por que você não me esperou? - Perguntei, afastando dos olhos os fios do cabelo loiro tingidos de sangue. - A polícia vai vim atrás de você. Eles vão descobrir a verdade, e eu também vou pagar por te esconder aqui.

  - Não deixa eles descobrirem, Alexandra, nada pra eles, me esconde, não conta, não conta - ele implorou, numa voz trêmula e agoniada que nunca o havia pertencido.

  - Tudo bem. Ela não quis saber da gente, agora não existe mais. Acho que no fundo eu também tô feliz.

  - Os demônios também não podem saber o que eu fiz! Eles vão me matar, no fogo, queimando, vão querer me levar pro vale do inferno, e eu fico com medo, Alexandra. Eles vão me fazer acreditar que quero morrer, mas eu não quero morrer de novo. Eu fiz com cuidado, tudo certo, sem rastro nenhum. Não posso pagar por um erro que não existe! Não posso!

  - Você me prometeu que manteria a calma, irmão. Que iríamos fazer tudo e manter o controle quando acabasse.

  Ele se livrou dos meus braços e correu para o canto do quarto fedido, o encontro das duas paredes mofadas, e começou a arranhá-las. Suas unhas soltando dos dedos e caindo no líquido amarelo que inundava seus pés e ele falando compulsivamente:

  - Eu sei, eu sei, eu sei e você, não sabe? Eu não consigo. Eu avisei, eu falei pra ela não me procurar mais, mas ela fica me enchendo o saco, eu tento não escutar, colocar pregos nos ouvidos, mas ela grita alto, alto, ALTO!

  Pensei em contê-lo, imaginando segurar seus braços por trás, mas percebi que seria bom deixá-lo extravasar as energias. Então o deixei.

  Deitei na cama e fechei os olhos.

  Respirei, chorando, e esperei.

  Alguns minutos se passaram, o demônio não veio e Thomás deitou-se ao meu lado. Seu choro chorando comigo.

  Meu irmão, a única coisa verdadeira que me restou no mundo, estava começando a se destruir.

  - Thomás - chamei. - Nós dois somos tudo o que sobrou. Você precisa me ajudar.

  - Eu sei - ele disse, com o sono embalando a voz.

  - Promete que da próxima vez vai me deixar ir junto?

  - Prometo. Eu sei que ela era nossa mãe, mas eu precisei fazer sozinho. Foi uma questão de dar o troco.

  E enquanto aquelas palavras pairavam no quarto, o telefone tocou no mesmo instante em que o piscar azul e vermelho da punição a caminho refletiu na janela e eu acordei:

  Um sobressalto em meio ao lençol encharcado de suor.

  A respiração profunda como se eu não a tivesse praticado até então, durante o pesadelo.

  O horror diante à incredulidade do sonho ruim e o telefone tocando alto em meus ouvidos.

  - Alô - atendi. Minha voz saiu um tanto desesperada, como se o gesto fosse a certeza palpável de que o pesadelo havia chegado ao fim e eu podia respirar de novo. Eu nem sabia quem estava do outro lado, mas a noção de existir mais alguém era o suficiente.

  - Só achei que você gostaria de saber sobre mais uma peça que vou pregar no besta do Oliver. - Disse a voz. - E você, ainda não fez nada com a Eloise?

  John.

  - Não. Nem sei se quero mais fazer alguma coisa. - Admiti, ainda afobada, desconcertada por toda a confusão em minha mente. -Olha só, John, meu irmão acabou de morrer, não quero ser um peão nessa vingancinha que é mais sua do que de qualquer outra pessoa.

  - Tá bom, minha amiga - o sarcasmo dele conseguia ultrapassar qualquer nível de arrogância - vou deixar você se afundar no luto. Eu só achei que agora que você tá completamente sozinha no mundo, o que é muito triste, sua "vingancinha" também estaria mais viva do que nunca.

  - Não existe do quê me vingar, John. Eu só tava com ciúmes deles dois e a situação do meu irmão me deixou um pouco mexida, só isso.

  - Uau, a morte é mesmo a fonte de renovação das almas! O que importa é que eu não sou covarde como você. Nem burro. Eu vou honrar minha família. O sangue do Oliver vai pagar por tudo que fez ao meu, e eu vou cuidar pra que seja um inferno bem lento.

  - Essa história tá te deixando maluco, isso sim! Do que diabos você tá falando? John...?

  Desligou.

***  

  O domingo a noite após uma morte na cidade. Ninguém nas ruas. Colégio vazio. De qualquer forma e por todo caso, a proteção do capuz do casaco é bem-vinda; o frio é um fato e pessoas uma possibilidade. Não preciso correr mais riscos do que o necessário.

  Iluminada pela luz prata da lua, o cinza nas paredes da Broken cintilam e as pontas da construção se derramam em sombras no chão, transformando o lugar num verdadeiro cenário de filme macabro; vazio e silencioso. Não existem seguranças ou câmeras, e mesmo que tivesse, o colégio é grande o suficiente para qualquer um fazer o que quiser sem ser visto, mesmo durante as aulas pelo dia. Tudo para que o ambiente resista forte e originalmente a todos os seus anos de história, sem se deixar corroer pelos embaraços da vida moderna; não duvido nada que o velho Linsembroden tenha isso tatuado na bunda. Faz sentido que uma escola velha seja comandada por um velho chato. A sorte dele, é que o método de deixar tudo livre, leve e solto só funciona, ainda, porque em Hill Course todo mundo conhece todo mundo. Por ser uma cidade pequena, as pessoas confiam demais umas nas outras, justamente por acharem que esse grau de conhecimento alheio seja mais profundo do que realmente é. E é assim que todo mundo vai para o inferno quando morrer.

  Teria sido mais fácil escalar o portão de entrada, mas por precaução, preferi ir até o muro de trás. O terreno baldio que agora abriga as ruínas de um casarão demolido teve alguma serventia.

  Se fora, a visão do colégio a noite era desconfortável, dentro, a coisa aumenta num grau diabólico! Definitivamente, a Broken Hill da noite não parece ser a mesma Broken Hill do dia. Existe algo diferente pairando nos corredores agora. E não é algo que se explica em uma sensação, e sim um fato. O resto da história agora está bem diante dos meus olhos. Então eu caminho até o banheiro masculino, onde tudo aconteceu.

  Um ódio mortal invade meu corpo. A excitação e todas as possibilidades de vingança rompem da minha mente e passam a esquentar o sangue que corre em minhas veias.

  Eu penso no Oliver e desejo sofrimento.

  Penduro o fone nos ouvidos e começo a fazer o que me trouxe até aqui.


CONTINUA...

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