DEZOITO

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  Com todos os últimos acontecimentos, voltar à Broken Hill e encarar o quão o prédio é macabro me causa um desconforto enorme

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  Com todos os últimos acontecimentos, voltar à Broken Hill e encarar o quão o prédio é macabro me causa um desconforto enorme. Por um segundo pensei em dar a volta e nunca mais colocar meus pés naquele lugar de novo. O colégio tem a aparência fria de uma igreja da Idade Média. No pátio principal, a pichação havia sido coberta por uma camada de tinta imaculadamente branca, o que me trouxe à tona o sonho da noite passada. E em meio à toda confusão em minha cabeça, a imagem de Eloise vindo em minha direção fez uma sensação assustadora de perda percorrer todo meu corpo. Minhas pernas perderam as forças e eu me sustentei em Eloise num abraço desastroso.

  - Tudo bem - ela sussurrou em meu ouvido.

  Eu não falei nada, continuei tentando sugar minhas forças de volta naquele abraço. Eu não queria perdê-la nunca, não queria que a confusão com o pai dela tivesse acontecido, mesmo que eu não soubesse o porquê. Não queria que meu pai sofresse tanto, não queria que o Jotapê tivesse ido embora, não queria que Alexandra tivesse morrido. Eu queria ter ficado e encarado o pai dela. Eu queria poder ajudar o meu pai. Queria ter abraçado o Jotapê. Eu sentia muito por tudo.

  Mas eu não fiz nada.

  Eu não falei nada.

***

  Eu não fui à escola naquele dia. Nas segundas, o cemitério só abria para visitação pela manhã. Depois que minha avó e minha mãe me contaram a trágica história sobre o passado que de alguma forma destruiu nossa família, eu finalmente entendi que o ódio que sentia pelo Oliver veio muito antes da Eloise. A conexão que tínhamos era quase sanguínea, e eu decidi que seria o responsável por acabar com ela. Eu precisava organizar meus pensamentos no cemitério aquela manhã, encarando os fatos.

  De uma hora para a outra eu passei a saber sobre o meu tio Vicente, o que o levou para debaixo daquele túmulo junto com sua vida visivelmente soterrados pelo tempo. Vinte e três anos haviam se passado desde a tragédia que toda a cidade sequer ousava lembrar. Vinte e três é o número pelo qual o Oliver e Eloise procuram eternamente. Eu nunca fui convencido por histórias de fantasmas. Continuo sem entendê-las e sem conseguir imaginá-las, mas agora posso admitir que existem muito mais coisas entre o céu e a terra do que consigo enxergar. Eu pude entender o que minha mãe sentiu quando perdeu o irmão, meu tio Vicente, porque eu sei o que se sente ao ver alguém que a gente gosta indo embora e não poder fazer nada. E eu sei disso graças ao Oliver. Foi sobre o túmulo do meu tio que jurei fazê-lo pagar a dívida que sua família tinha com a minha. Foi para isso que eu passei a viver.

***  

  - Acho que não foi uma boa ideia fazer isso agora. O sol tá muito forte - Eloise reclamou. Havíamos combinado de sair à procura de casas com o número vinte e três pelas ruas de Hill Corse.

  - Ok. Vamos procurar só mais um pouco. Tenho certeza que as casas no sonho deviam significar alguma coisa - concordei, dando à ela a garrafa de água que eu havia levado na mochila.

  Ela sentou na calçada da esquina do quarteirão, tomando toda a água da garrafa de uma só vez, e lá estava, bem atrás dela, quase passando despercebida pela minha atenção.

  - Olha.

  - O que foi?

  - Bem atrás de você - falei, quase sem acreditar.

  Apesar de Hill Course ser uma cidade pequena e eu morar nela desde sempre, existiam lugares em que eu nunca havia estado antes. E lá estava um deles. Atrás de Eloise, no final da rua, a entrada para uma pequena vila de casas mal cuidadas e exatamente iguais, como no meu sonho da noite passada.

  - Acho que não estou me sentindo muito bem, deve ser o sol - ouço a voz de Eloise falando ao longe. Ela ainda estava sentada na calçada, piscando os olhos algumas vezes, como se tentasse recuperar o foco da visão.

  - Se você quiser a gente volta aqui outra hora. - Sugeri, preocupado.

  - Não, eu fico bem. Acabamos de achar o que estávamos procurando.

  - Tem certeza?

  - Deixa de bobagem - ela me garante com um beijo no rosto e tomando a frente do caminho, em direção à vila.

  O lugar era escurecido pelas árvores que cresceram sem nenhum cuidado entre uma casa e outra. Algumas casas vazias e caindo aos pedaços dava ao lugar uma aparência de abandono. Mas apesar de parecer uma vila fantasma, enquanto passávamos em frente a uma das casas, um bebê que ainda nem andava direito abriu a porta e se arrastou pela calçada esburacada. Eloise voltou alguns passos e segurou minha mão enquanto um homem mal encarado levava o bebê de volta para dentro, fechando a porta com um estrondo.

  Continuamos andando, com um cuidado que eu não sabia ao certo se era necessário.

  O barulho de algo frágil caindo no chão atrás da gente nos assustou.

  Era um ovo. Caiu do ninho de uma das árvores espalhando um líquido escuro no chão. Mais um sinal de que estávamos no caminho certo. Haviam pássaros no sonho. Corvos.

  Já faziam algumas horas que estávamos procurando. O escuro da vila dava a impressão de já ter anoitecido.

  Dois cachorros começaram a brigar em um beco, derrubando uma lata de lixo. Sinto de novo a sensação de não saber se estava acordado ou em mais um sonho. Os cachorros brigavam por pedaços de ossos grandes que pareciam ser de gado.

  Os latidos e barulhos de coisas quebrando não deixaram eu perceber quando Eloise despencou atrás de mim. Havia desmaiado.

  - Alguém! Ajuda! - Gritei quando já a vi no chão, apoiando a cabeça dela em meu colo e buscando desesperado em volta. Então eu vi.

  Bem na minha frente.

  Uma casa de número vinte e três.

  Meu corpo se resetou por alguns segundos, e como no sonho, pareceu ter vida própria logo em seguida.

  Coloquei Eloise em meus braços e fui em direção à casa.

  O piso de madeira da varanda rangeu com o peso.

  Tentei bater na porta usando o pé, mas a porta não estava trancada e abriu-se sozinha, como numa história de terror.


CONTINUA...

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